CASAL MODERNO
Eduardo Selga

Quantos golpes de marreta, temperados com sua decisão irrevogável e ira, já havia dado no soalho não contara. Um leve aborrecimento por causa disso, agora que aos cacos boa parte da cerâmica européia, o contrapiso visível. De repente, a curiosidade: quantas vezes precisei ferir o chão? Logo ele, executivo caro a muitas empresas, berço de ouro, nunca precisou consumir seus músculos de academia em trabalho braçal. No início, nem mesmo segurar corretamente a ferramenta. Tolice sem propósito essa minha curiosidade, só falta arrebentar o concreto e pronto: terra. Blêiser, gravata italiana, camisa de seda chinesa, perfume masculino e francês: sob tudo isso, rios dum suor-periferia a que não estavam acostumadas suas narinas sensíveis. Pausa. Enxugar o rosto. Pulmões trabalhando repletos de urgência. Porque oxigênio.

- Já acabou a escavação, querido?

Televisor ligado, horário nobre, o repórter do Jornal desdizendo notícias redigidas para entrar por um ouvido e sair por outro. No sofá vermelho-paixão o corpo posicionado como praticasse yoga, calcinha lingerie preta cavada exatamente para não cobrir toda a bunda, seios tenros à mostra; cabelos úmidos, esculpidos em ondas, cheirosos, tão compridos que no ombro. Indisfarçável patcholi: pele higienizada. Sabonete, cremes, certamente. Com esmalte café pintava as unhas das mãos, na fisionomia o prazer e a serenidade quando se dedicava à tarefa de embelezar-se. Mas fisionomia também é lábios, e neles, não apenas o convite ainda que involuntário ao sexo sem margens: o sarcasmo desenhado quase toda a vez em que dirigia a palavra ao marido, quando a revolta tomava conta dele.

- Se ainda restou algum respeito por mim, fecha o quanto antes essa boca imunda. Abre os olhos! Valoriza o mundo que construí para nós, os dois, mas fundamentalmente pensando em você. O conforto. A lipoaspiração. A Ferrari prata na garagem. O dinheiro farto para alimentar nos shoppings seus histerismos consumistas. As viagens ao exterior todo santo réveillon. Tudo isso com a única exigência de você não sair de casa, nem os pés na rua. Para manter nosso segredo. Não macular minha imagem enquanto homem de negócios. O meu amor, até anteontem mais sem olhos do que cegos de esquinas, segurava-me com carinho as mãos, atravessava-me ruas, conduzia-me às lojas e sempre antes de sussurrar obstinado e nas situações mais improváveis: "compra isso, presenteia sua paixão..." Tudo para lhe ver feliz! E também porque no íntimo sabia: nunca brotou amor verdadeiro nesse peito. Deus, acaso ele existir, talvez saiba o quanto gostaria acreditar nele para ter a quem pedir em rezas às dúzias você sentisse por mim ao menos uma esmola de amor, qualquer farelo do tanto que eu lhe amei... Olha em volta! Vê a riqueza? Sabe qual o preço? Ética. Honestidade. Amor-próprio. Nenhuma pechincha, garanto. Nunca deixei você descobrisse, mas... não foram dois nem três os que, após a confiança fisgada por mim, tiveram-me em boa conta, amigo para qualquer hora. Todos levei à falência. Em nosso proveito. Carrego nas costas até um suicídio por causa desse amor cardiopata, solitário: sempre gritou por você no deserto e o máximo que conseguiu foi vislumbrar a miragem de ser correspondido. Mas, onde a importância? Minúsculo drama particular, não é mesmo?

- Como você é cansativo, querido... Outra vez o mesmo discurso bolorento da vítima? É provocação ou masoquismo? Enfim... desfiemos a ladainha. Mas, por caridade, entenda: nenhum dia houve em que não tenha amado sinceramente o seu bolso. Amor daqueles que acendem fogueira na alma, creia. Fogueira da cobiça, é lógico. Pilantragem? Fui pusilânime, e outras tolices semelhantes repetidas à exaustão por você? Entenda como bem quiser. Mas... diga-me: qual foi o instante em que optei por não mentir ao dizer-lhe as palavras românticas moldadas ao deslumbramento nutrido por mim? Muito natural eu me aproveitar duma espantosa carência afetiva. Predador e presa, sabe como funciona. Ambos conhecem o papel que lhes cabem. Portanto, nunca iludi; apenas, por conveniência, não esfreguei em sua cara a verdade que você se recusava a entender. Além do mais, há séculos não é mais nenhum menino. Entendeu, tolinho da mamãe? Eu sei, eu sei... presenteou-me com o ócio remunerado. Graças aos Céus! Eis outro erro: fazer nada dá uma canseira... Por isso resolvi trabalhar.

- Trabalhar? Nunca houve necessidade. Pior, você se expondo causaria sérios prejuízos à minha imagem, conforme tentei explicar quando me informou sua decisão. Teimosia, pirraças, greve, chantageou abandonar-me na vida. Algemas nos punhos, impossível argumentar. Venceu! Mas daí a prostituir-se?!

- Puta é a senhora sua mãe, aquela criatura adorável, meu pequeno imbecil de estimação... Considera-me alguém que fornece orgasmos, é bem mais adequado. Afinal, cobro alto preço em troca do serviço. Cuja qualidade não se pode discutir, sabemos. Outra coisa: usa a inteligência ao invés das emoções para raciocinar, homem... É um ótimo negócio para nós, estará sempre proporcionando lucros muito além do razoável. Não imagina o mundo de homens mal amados vagando pelas ruas, nos lares, ungidos pelo sacramento do matrimônio... Carência afetiva em último grau. Quase inacreditável. Concorda, amorzinho? Mas o fenômeno tem explicação: as prendadas e virtuosas esposas que esqueceram os maridos num canto da sala. Exatamente as mesmas que juraram amor eterno perante o altar católico ou evangélico. Conhece algum caso assim, de abandono?

- Vagabun...

- Não completa a palavra! O juízo perfeito mandou-lhe o seguinte recado: muita cautela com o que diz... Para enterrar o assunto: estes peitinhos macios aqui, está vendo? Pois é... neles, amor da minha vida, mama quem eu bem quiser, ou melhor, aquele cuja carteira possuir recheio mais gostoso; a calcinha, eu deixo tirar quem...

- Cala a boca!

- Sossega. Ficar nervosinho provoca rugas temporãs, prisão de ventre... Um caos para a saúde. Por exemplo: insistindo dizer grosserias, você pode duma hora para outra perder alguns dentes frontais. Condutas assim causam hemorragia interna em qualquer casamento. Mas está muito bem, mantenho-me silêncio. Em contrapartida, não precisa fazer tanta algazarra ao cavar esse túmulo interminável; está quase na hora da novela do MacJhony Júnior, aquele sorriso volúpia. Homem maravilhoso! A ele meu corpo até de graça, caso pedisse. O único por quem suspiro, acredita? E peço uma gentileza: conclui a sepultura antes das vinte e duas horas. Explico: em minha agenda, todo o dia lotadíssima, há um cliente especial para receber. Em nossa alcova, onde mais? E não adiantam chiliques, surtos de ciúmes. Falando nisso... veja só o quanto viver é ironia... você o conhece melhor do que eu: é aquele supervisor administrativo da matriz, subordinado às variações do seu humor.

Pressionou um lábio contra o outro no intuito de amordaçar o ressentimento que lhe mastigava a alma por causa das palavras perfuro-cortantes desferidas por aquela boca magnífica, língua enlouquecedora. Dor. Lacerando fibra por fibra seu coração sincero de homem apaixonado. Lágrimas ameaçaram vir à tona. Não se permitiu, porém, demonstrar fraqueza: engoliu-as a seco, farpado garganta abaixo. Sangrando dolorosamente. Aquilo tudo se traduzia em quê? Matar-me assim, tão aos poucos e aprendiz de Torquemada, seria algo parque de diversões? Uma primeira seqüência de golpes raivosos no concreto nem tão duro quanto supunha porque, além de o ódio ser força rompedora, já domesticara a ferramenta braçal. Porém, imagens. Contínuas. Aborrecidas. De mamãe. Lepra da minha vida! Marretadas e dor. Filho, tenta um esforço e guarda nessa cabeça inútil o que vou lhe dizer: nunca, do verbo "nem pense nisso", nunca apaixona sincero por mulher nenhuma. Estamos longe imenso de valermos a pena. Aqui não é sua mãe, e sim a experiência quem está falando. Pela primeira e última vez. Por maior a cachoeira de ejaculações que você atinja com fulana; por mais convicto esteja de que o grande amor reservado pelos Céus chegou para lhe trazer aquela felicidade Carochinha proclamada nas igrejas, o Paraíso terrestre. Acaso tenha alguma simpatia por si mesmo ainda, filho... abandona o quanto antes a fábula de enxergar-se Príncipe Encantado da primeira Cinderela que resplandecer na esquina. Bruxas Más, todas somos. A essa regra inexistem ressalvas. Rindo?! Então continua o sorrisinho imbecil e em poucos anos sua vida será uma colossal abóbora-moranga. Inexorável. Com um agravante: viver é todos os dias fugir inutilmente do Cavalo de Tróia. Exige tenhamos alma musculosa, repleta de coragem inarredável. Mas você, querido filhinho, já garoto cultivava covardia às toneladas. Que até hoje lhe pesa na moleira. Nunca percebeu o quanto de nojo isso me causa, não é mesmo? Algo como... sei lá! Você fedesse a esgoto! Mas é verdade!... Fazer o quê?! Sua maior herança (ou maldição?) genética é paterna, infelizmente. Até a timidez na firmeza de propósitos é idêntica à daquele atraso de vida com quem me casei apenas para ver papai feliz. Ah, esqueça: ameaçar beicinhos, caras e bocas não tem mais eficácia.

Rompido o concreto magro, abrir a terra. Tarefa simples, a pá aguardava ordem mãos à obra. Não consigo atinar com os motivos de tamanha perfídia por parte de quem amei o máximo que me foi possível. Com certeza, os raros colegas e os incontáveis inimigos sabem em minha cama dorme um travesti. Nenhuma tragédia solteira está feliz da vida, a História é pródiga em exemplos. Justamente por isso, sabem da humilhação máxima: pior do que amar fora dos padrões tolerados, muito pior, é a prostituição anunciada aos ventos e sob todos os aspectos dispensável. Ainda se dinheiro fosse problema!... Adeus carreira profissional, respeito... Porra, mãe, foi bruxaria sua... tanta solidez ruindo como se isopor, não foi?! Fiz tudo o que mandou, nunca me apaixonei por nenhuma mulher! Em troca, a vida reservou para mim o quê? Ou a senhora me educou como quem desenha um falso mapa do tesouro, esse sofrimento todo planejado, inevitável? Vingança, só pode ser! Nunca gostou de mim mesmo!...

- Amorzinho, agora chega. A campainha está tocando. Pelo horário, é o cliente com hora marcada. Já acabou com isso?

- A cova está feita. Mas preciso de sua ajuda. Enquanto me ajeito no fundo da sepultura, você poderia fazer-me o favor jogar terra por cima?

A má vontade e a pressa em servir o cliente fizeram com que pouca terra cobrisse o corpo vivo do homem enterrado mais ou menos no meio da sala ampla. A televisão foi calada à força, embora ela ainda preferisse assistir mais um pouco de MacJhony Júnior, o galã. Entretanto, lei de mercado, é suicídio deixar esperando quem remunera com generosidade. E foi no sofá mesmo (não houve tempo para sugerir meu bem vamos para o quarto, é mais confortável) que a prestação de serviço efetivou-se, cliente cheio de pressa e tara.

- Hum... não segura aí... ah, você também gosta do que eu gosto? Enrustidinho, heim... Calma, não precisa arrancar minha calcinha assim, tanta força... Ei! Cuidado com esses dentes, machucam! Apenas língua e lábios. Vem cá, deixe-me explicar melhor.

Debaixo da terra insuficiente, ele ouvia todos os gemidos do amor alugado por uma ou duas horas, testemunhava justamente o que procurava esquecer: a traição.

 

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