LEITURA DINÂMICA
Beto Muniz

 
 

A vila era do tamanho dum ovo, de codorna. Pequenina e retangular como são as vilas no interior de Minas Gerais, uma avenida principal por onde entram e saem os poucos visitantes, duas vias paralelas à principal e algumas ruas transversais onde moram os funcionários do comércio local. No caso essa vila-ovo-de-codorna tinha cinco grandes avenidas sem asfalto e mais algumas vias paralelas, todas simetricamente cortadas por ruas idênticas formando um enorme tabuleiro de xadrez. O centro comercial ficava no entorno da igreja, frente para a praça, um gramado ralo com meia dúzia de ipês-roxos e duas dezenas de coqueiros plantados sem nenhum critério estético, paisagístico ou lógico. Palmeiras imperiais enfeitavam a rampa da igreja, por onde subiam fiéis em procissão na quaresma e os carros com noivas em sábados de casamento. Essa era a vila onde morei até completar dezessete anos. Com muita da boa vontade é possivel elevar seu status para cidade, porém os nativos daquela terra elevaram o status assim que souberam que o Bradesco se instalaria na praça, ao lado da Casas Pernambucanas, fazendo muro de divisas com o Banco do Brasil. De livre e espontânea vontade eu nunca deixei de pensar que o povo do pé vermelho tinha era muita pretensão e aquilo lá, mesmo com a construção da igreja nova, cuja torre que se vê a uma légua de distância, continuava sendo um vilarejo do tamanho dum ovo de codorna. Parte dessa minha má vontade vinha da impertinência pré-adolescente de ter nascido em São Paulo, de achar que conhecia uma cidade de verdade com todas suas dimensões absurdas - fui morar em Minas ainda criança, e também dum despique referente aos vizinhos enxeridos.

 

Ao completar treze anos tudo que eu queria era uma vida normal de moleque dessa idade em vilarejo mineiro. Fazer estripulias no ribeirão; participar do campeonato de punheta em cima da pinguela; invadir casa da zona e passar a mão nas moças; levantar as saias das meninas na praça... ou praticar atentados menores contra a lei e os bons costumes: roubar galinha pra fazer galinhada na casa do Zé; amarrar ficha para jogar sinuca a tarde inteira no bar do Samuca; furar o pneu da bicicleta do Willian porque ele se engraçou com a Maria; passar debaixo da lona do circo e economizar dinheiro para comprar pipoca pra Maria. Ela pagava o ingresso. Entrava e ficava guardando meu lugar bem diante do picadeiro. Tempo bom! Mas cada arte dessa me custava alguns cascudos, sermões intermináveis e horas de castigo. Isso quando não virava surra com vara de marmelo! Parecia que todos os olhos da vila estavam sobre a minha pessoa e os habitantes daquele canto esquecido no mundo tinham prazer em me dedurar. O filho do pastor isso; o filho do pastor aquilo; o filho do pastor assado; o filho do pastor mais uma vez; o filho do pastor? quem diria; o filho do pastor... Uma desgraça esse filho do pastor! E o filho do pastor era eu. Pobre filho do pastor, nem chutar latas na rua podia. Bastava armar o pé que aparecia uma cara antiga na janela reclamando os modos do filho do pastor.

 

Invariavelmente o alcagüete idoso e ranheta desafiava o reumatismo na longa avenida - longa para seus padrões, e batia na porta da casa do pastor para relatar os inconvenientes cometidos pelo seu primogênito. Sim, era por pura maldade que se aumentava alguns pontos no relato. Coisa de pessoa frustrada com a vida, gente ruim mesmo, com o cão no lombo, endemoniada! Mas o pastor não percebia o espírito inconformado com a mesmice dos dias, crescendo dentro do menino. Não olhava nos olhos do filho para vê-lo desabrochando homem e se tornando maior que a vila... mesmo não sendo grande coisa tornar-se maior que um ovo de codorna. E o filho do pastor foi se podando, se segurando, se policiando, tentando ser exemplo para os filhos dos não pastores. Até que não suportou mais sobre si o peso da mediocridade, gorda, obesa, sendo alimentada com o enxerimento daquela gente.

 

Mês de março, sol forte, poeira leve, vermelha. Dia de comércio vazio. Tarde de pessoas em silêncio debaixo das sombras dos ipês. O ônibus diário chegou sem estranhos, os poucos passageiros eram de retorno ao lar. Dentro de duas horas aquele mesmo ônibus retomaria a estrada de terra batida, em direção a fronteira do estado. Rotina. Voltaria a vila novamente no dia seguinte para ficar outras duas horas aguardando quem quisesse sair daquele ovo de codorna.

 

Subi a avenida chutando uma lata sem me importar se algum rosto enxerido surgiria na janela. A cada pontapé a lata levantava uma camada fina de poeira e parava três, quatro ou cinco metros adiante esperando novo chute. Nestes quatro ou cinco metros eu pensava no meu emprego nas Casas Pernambucanas, na minha bicicleta vermelha, nos meus quatro pares de sapato e nas minhas três calças jeans. De repente eu lembrei que gostava mesmo era de ovo com gema mole e tomate picadinho em cubos misturados com arroz. Sim, esse era meu prato predileto e a calça jeans quase branca era a mais usada. Novo chute, novo espaço para pensar - dos tantos gibis meu maior orgulho é a coleção do Homem Aranha. Dos amigos o mais fiel é o Henrique. Das diversões de moleque a mais gostosa era banho no córrego do chapéu. Chute. Dos quase seiscentos livros lidos o preferido é Moby Dick. Chute. Preciso aprender a pronunciar corretamente os nomes ingleses nos livros. Chute torto. Improvisei a pronúncia 'Pecuódi' para a baleeira Pequod mas deve estar errada. Chute fraco. 'Ma-nha-tan' é o improviso para a ilha de 'Niu Iorqui'. Chute. Manhatan é uma pronúncia feia demais, deve estar errada. Chute. Niu Iorqui está correto ouvi o padre pronunciar assim... Chute. Filho de pastor que cultiva amizade com padre tem salvação? Um novo chute, forte, como resposta. Padre Dázio é mais inteligente que todos os demais adultos da vila, disso não resta dúvida, tem sempre um causo, uma história de sua saudosa Itália ou de uma assombração encaminhada para o limbo. Chute. Capitães de Areia foi meu primeiro livro, presente da Dona Vilma, professora. A caixa de engraxate foi presente do avô materno que era carpinteiro. Chute. Os desenhos na parede do meu quarto renderam bons elogios, menos do pai pastor. Chute. Maria... Chute. A boca da Maria é coisa de outro mundo. Outro chute torto. Outro mundo. Chute para o meio da rua. Maria. Chute aproveitando para cruzar a avenida. O mundo. Chute. A vila fica linda quando os ipês florescem. Chute reto. O ônibus sairá em menos de uma hora. Último chute - parei de pensar nas coisas da vila. A lata parou em frente o portão de casa, casa do pastor, e lá ficou.

 

Meia hora depois, mochila nas costas e uma sacola na mão, me despedi da lata, testemunha inanimada dum súbito. Depois de três anos voltei a minha vila e quando o ônibus parou na esquina em frente a praça, no lado oposto ao banco do Brasil, eu lembrei dela. A lata. Pisei a poeira daquele ovo de codorna, saudoso dos irmãos, da mãe, do pastor, dos velhos nas janelas, dos amigos, padre Dázio, córrego do chapéu, bicicleta vermelha. Caminhando pela pequenina avenida em direção a casa do pastor o pensamento voltando para a lata. Bom seria se por alguma magia ela ainda estivesse lá, parada, intacta, mística, esperando por mim e curiosa para ver o homem que me tornara aos 21 anos. Diante do portão parei e me retornaram os sentimentos de adolescente, oprimido talvez pelos remorsos de não ter dado adeus e não ter avisado que estava voltando. Apenas a lata me viu partir e nem ela testemunhava meu retorno ao lar. Chute. O portão ainda se abria com um chute no trinco, então pouco devia ter mudado nessa minha ausência. Entrei.

 

Jamais voltei a ver Maria que gostava de revistas, fotonovelas e beijos. Eu gostava dos beijos dela, mas adolescer filho de pastor numa vila do tamanho dum ovo de codorna é um fardo muito, muito, muito pesado quando se acumulam na mente as aventuras lidas nos mais de quinhentos livros do padre Dázio. O pastor que me perdoe.

 
 

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