CANÇÃO DE MUITO LONGE
Glauber Ramos

Andando pela noite fria e úmida de Londres rumo à Abadia de Westminster, onde musgos se propagam sobre muros seculares - mas também poderia ser sob as luzes indiferentes de algum café parisiense situado nos arredores da Rue Mouffetard, ou um gueto cinza e gélido de Moscou, tão frio quanto os olhos de quem passa, ou mesmo algum subúrbio nova-iorquino onde um grupo de mendigos se abriga junto a uma fogueira durante a época de Natal - um homem passa, indiferente, absorto, náufrago na solidão.

Seus passos não levam a um destino certo. Tão somente o conduzem entre pessoas estranhas em meio à nova paisagem. Nada lhe é familiar: odores, paladar, o gosto da água que não vem do seu rio de infância, o frio o qual obriga a se vestir de maneira desconjuntada, o céu de nuvens pesadas como chumbo que escondem o brilho das estrelas, um parque de crianças pálidas e infelizes. Onde estou? Exílio das almas.

Na superfície do papel onde a lágrima repousou, criou-se uma mancha porosa e enrugada. Mas as cartas da mãe não carecem sequer de palavras para dizer dor e saudade. O dedo indicador contorna suas letras miúdas e arredondadas, como se assim buscasse o afago e o calor daquelas mãos que num dia de chuva lhe escreveram. O nariz busca desesperadamente o cheiro da cozinha, o perfume do jasmineiro, a terra molhada... Em vão.

No ar, um som lamurioso alcança seus ouvidos. Veio como um ruído abafado, coro de vozes embargadas, indecifráveis num primeiro instante. Mas a canção elegíaca ganhou forças. Sim, de fato é uma canção triste, talvez Edith Piaf tocando em algum gramofone de um bordel esquecido no tempo, cujas messalinas se escondem da luz solar, abrindo-se em flor somente nas horas mortas do dia para os velhos colibris da madrugada.

Mas a canção de muito longe ganha forma. Não, não se trata de uma música qualquer. O choro engasgado se revolta para se transformar num pedido de prece, rompimento da ordem aparente das coisas, grito que abala os sete céus e ordena: “Cativo, rompe os grilhões da escuridão. Caminha para tua casa, toma teu assento à mesa, retorna ao teu lar há tanto esquecido. Não tenhas medo, cativo. És livre agora. Olha para o céu sem temer o sol. Veja como são os pássaros a tangenciar o firmamento. Tu és um pássaro, cativo. Agora, feche os olhos e caminhe sem medo. Venha, todos os teus amigos e irmãos aguardam por ti. A tua mãe, cujos olhos ressecaram nas noites em claro, agora te sorri após tantos anos. E assim será, para todo o sempre.”

 

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