DE OLHOS BEM ABERTOS
Tatiana Alves

Tentara, de todas as maneiras possíveis, sair para a luz do sol. Os habitantes da sombria caverna julgavam que as imagens bruxuleantes, instáveis e ilusórias, correspondiam à
realidade. Viviam em um mundo de trevas, sem ter consciência de tudo o que esconheciam. Ele, de algum modo, sabia que a verdade o aguardava, acenando-lhe, como se ele fosse uma espécie de eleito, um assinalado cujo destino fosse o de abrir os olhos de seus companheiros.

Num dia, sem que se esperasse, cruzou a fronteira entre a segura e confortável caverna e o mundo d'além-breu, de onde ninguém jamais retornara. O que quer que o aguardasse lá
fora, ele não se faria de rogado. Se houvesse algo à espreita, ele achava-se no direito de saber o que era.

Partiu, munido do alforje da obstinação e do cantil da ousadia. Sem olhar para trás - não porque temesse virar estátua de sal, mas porque seus olhos tinham a frente como objetivo - , saiu, de cabeça erguida, ignorando os perigos do lado de fora e as proibições internas, que eram bem claras quanto à punição para quem retornasse. Talvez por isso ninguém jamais tivesse voltado.

Seu corpo projetou-se de forma intempestiva, traduzindo seu desejo de liberdade. Seus olhos, contudo, habituados à escuridão da caverna, fecharam-se, ofuscados pela luz que lhe
banhava o rosto.

Passados alguns instantes, suas pupilas dilataram-se, já acostumadas à claridade. As cores e contornos, agora tão nítidos e cristalinos, pareciam dançar diante de seus olhos, Salomés multicores a seduzir Herodes e a exigir o rolar de cabeças. Extasiado diante de tanta beleza, chorou, transformando as flores que se abriam em arco-íris e caleidoscópios. Sentiu-se um habitante do Inferno dantesco que, anistiado, conhecera o Paraíso. O pior cego, pensou, não é aquele que não quer ver, mas aquele que desconhece a própria cegueira. Percebeu, então, que ninguém jamais retornara à caverna porque o conhecimento, qual um poderoso narcótico, vicia aquele que dele se apodera. Entretanto, nem todo narcótico entorpece, e ele sentia-se repleto de lucidez, prenhe de sensações.

Nos anos que se seguiram, seus olhos de habitante da luz enxergaram guerra, violência, tortura, crueldade. Vislumbrou, por um momento, o ato desesperado daquele que, horrorizado com a infâmia, furara os próprios olhos para não conviver com a desgraça que, sem querer, desencadeara. Mas dessa vez seria diferente. Não furaria os olhos, até porque havia uma criatura à espera, a cujas perguntas teria de responder. Sabia que cedo ou tarde a encontraria. Encará-la-ia e a enfrentaria. De olhos bem abertos.


fale com o autor

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.