VAI GRAXA?
Beto Muniz
 
 

Ao completar nove anos ganhei, do avô materno, uma caixa de engraxate.

Durante quatro anos, ganhei alguns trocados honestamente. Foi um período de aprendizado, de descobrimento do ser humano, da alma alheia, de desenvolver a busca pelo acerto imediato: "Vai graxa?". Antes de ouvir a resposta eu sabia que sim. Em meu último ano na profissão autônoma de engraxate, já sabia que não bastava apenas verificar as necessidades do calçado, deveria haver também a predisposição do proprietário em recuperar ou embelezar o couro de seu sapato, e pelo gestual do indivíduo eu conseguia intuir se daquele bolso sairia ou não algumas moedas. Engana-se quem está deduzindo que senhores visualmente mais abonados eram os melhores clientes. A solidariedade se alojava em bolsos mais humildes. Vai graxa? Vai.

Bons tempos aqueles. Na dignidade de menino pobre havia a necessidade do trabalho ser executado com esmero. Em troca do capricho vinham mais moedas. Bons tempos!

Nenhuma semelhança com estes meninos de hoje, pretensos engraxates, percorrendo a rota dos happy hours, dos bares badalados em busca de algo mais que um par de sapatos para engraxar. Não há dignidade na oferta de serviços, não há intenção de aprender, de desenvolver o trabalho. O que eles carregam pendurado no ombro não é uma ferramenta de trabalho. São meninos disfarçados, encapuzados pela profissão. "Quer engraxar tio?". Eu os conheço sem saber quem são. São imbecis sem intuição, sem curiosidades, sem ambições. Lógico que não quero engraxar. Eu quero beber meu chopp, quero acompanhar os rumos da prosa, quero não ter que responder. Porém, o menino encapuzado não pretende abandonar sua presa: "então paga um lanche tio!". Se ele espera alguma compaixão, erra novamente. Esse tio aqui se envergonha dos rumos que tomou sua antiga profissão. O pequeno chantagista não tem fome. Não tem capricho com a graxa. Não vende sua mão de obra, não oferece seu trabalho. Essa nova casta nada tem a oferecer enquanto tenta extorquir seus pretensos clientes. Só querem levar alguma vantagem, sair com algo nas mãos limpas de graxa. Tudo que oferecem é uma chantagem velada: "por algumas moedas te deixo em paz com sua turma e seu chopp gelado".

Não são pequenos engraxates. Olhe bem! São meninos idiotizados pela mendicância. A graxa é um disfarce que aplicam mal-humorados no calçado do incauto que desconhece suas intenções e aceita pagar pelo serviço. Jamais aceito. "Então dá umas moedas tio?". Não! Não quero pagar pela graxa, não quero pagar lanche e também não quero pagar para que estes aprendizes de abutres saiam da minha frente. Eu nem mesmo os quero longe, apenas não os quero.

Deixo-os. Ignoro-os e eles se vão, desaparecem na rota dos bares badalados, somem na noite. São Paulo os acolhe.

 
 

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