O MARINHEIRO DO CERRADO
Edson Campolina
 
 

Minha Guarda em formação no portão do barraco aguardava meu cortejo. Era uma tarde quente, como aquelas em que gostávamos de dançar suando a farda. No canto de minha pequena sala de chão batido, esta alma sem corpo observava a todos serenamente. No centro, meus filhos erguiam os dois paus encaminhando o caixão sem alças porta afora. Seriam apenas dois quarteirões ladeira abaixo, por isto amarraram as fitas coloridas nos postes de luz abençoando a procissão de minha ex-morada. As mesmas fitas que enfeitavam os mastros das bandeiras dos Santos.

Os repiques dos tambores romperam a calmaria da vila: TUM, tum, tum / tum, tum, TUM, TUM... Despertaram-se os curiosos que debruçaram suas carcaças nas janelas. Incomum uma folia de congado em pleno Março. E a orgulhosa Guarda dos "Marinheiros de N. S. do Rosário", em fila dupla, com suas fardas brancas e quepes de marinheiros abriam o caminho dançando, rodopiando e cruzando suas manguaras como espadas guerreiras. Mas naquela tarde não tinha rainha Conga, nem rei Congo. As coroas não cobriam qualquer cabeça, estavam de luto sobre um manto negro carregado pelos anciãos da Guarda. Meu quepe de capitão acompanhava a bandeira da Guarda com a imagem da Santa.

Zé preto, o tenente, com seu turbante de fitas coloridas e descalço, ia no meio da guarda protegendo o caixão. Dançava emocionado, saltitando e rodopiando nas pedras do calçamento da ladeira, mantendo o ritmo dos tambores com sua espada prateada. Esta alma sem corpo acompanhava do alto dos postes como uma coruja empoleirada. Ainda não recebera qualquer aviso ou chamamento, fosse dos de cima ou dos de baixo.

Aproximamos da velha Capela do Rosário. De sua torre solitária, como na época da colônia, os pequenos sinos repicaram dobrados:

Não tem nada!
Não tem nada!
Não tem nada!

Era um pobre a ser velado. Um pobre e negro.
A cantoria de gritos deu lugar à melodia de abertura:

"A lua alumeia a noite,
O sol alumeia o dia,
E alumeia nossa Guarda
O Rosário de Maria...".

Não tinha foguetes nem busca-pés. Deram três voltas no cruzeiro, mais três voltas em torno da capela e entraram. Deitaram frente ao altar o caixão com a carcaça deste velho capitão marinheiro que só conheceu o cascalho e as árvores nanicas do cerrado mineiro. Em roda fechando o altar e o caixão, todos rezaram aos quatro Santos: N. S. da Conceição, N. S. Aparecida, São Benedito e nossa Santa Madrinha do Rosário. Os neguinhos moleques penduraram-se nas janelas laterais observando o velório. Zé Preto beijou o quepe de capitão, o ergueu diante dos Santos, o passou a cada componente da Guarda que o beijou e, por fim, o trocou com o turbante colorido de fitas. Então puxou sozinho, com sua voz estridente, mas trêmula, a cantoria da despedida:

"Êeee Tamburi!
Êeee Tamburi!
Se a morte num me matá,
Se a terra num me cumê,
Êeee Tamburi!
Para o ano eu vou vortá
Tamburi...".

Minha Guarda já com novo capitão, esta alma sem corpo subiu a montanha, atravessou a mata de troncos negros do cerrado, indo ao encontro do sonhado mar. Do alto avistei uma caravela com inúmeras e brancas velas que panejavam na fresca brisa vinda da imensidão azul de água. Marinheiros negros e de fraldões brancos, em formação na portinhola do convés me faziam reverências. Um distinto moreno, chamado poeta, sem títulos da côrte, me recebeu oferecendo um turbante branco lendo uma poesia. Então a caravela partiu rumo ao horizonte azul. Nas vagas do alto-mar, minha mente esvaziou-se.

Outra caravela cruzou nossa rota. Ia arribar-se na fralda de outra montanha. Navegava sem velas, sem marinheiros e sem capitão. Somente o vento no comando de seu leme. Então minha mente - se alma tem mente - perdeu-se.


FIM

 
 

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