ESTILHAÇOS
Tatiana Alves
 

Era quase como um ferimento de guerra, daqueles que talvez doam mais na alma do que no corpo. Descobrir a gravidez quando pensou estar sofrendo um aborto espontâneo já teria sido suficiente. Mas descobrir ainda estar grávida, numa situação em que o crescimento do embrião lhe poderia acarretar a morte, era demasiadamente cruel. Seus anseios e medos espalhavam-se pelo corpo, numa caudalosa confluência de emoções das quais nenhuma doppler daria conta. O filho tão desejado instalara-se no lugar errado, embora em corpo de mãe, assim como no coração, sempre haja lugar. Mas a ciência e a anatomia parecem se ter esquecido disso, e era necessária a retirada da peça - talvez assim descaracterize um pouco, e o faz-de-conta-que-isso-não-era-seu-filho possa apaziguar, suavizar a dor da perda, numa espécie de laxante para a psique.

Preparara todo o local da festa, convidara o pequeno reiteradas vezes a habitar aquele espaço especialmente feito para abrigá-lo. Mas tamanha ansiedade fizera o convidado chegar mais cedo e alojar-se na casa errada, de onde cedo ou tarde teria de sair. Saía aos poucos, como quem deixa a porta entreaberta para um dia retornar. Não veio à luz, morreu ainda na escuridão da caverna, caminho não sinalizado por onde se perdera. Talvez algum dia retornasse. Enquanto isso, seus vestígios se iam apagando, como lascas do ser que viria a se tornar, como estalactites que se formam, belas e tristes, sem jamais ver a luz do sol.

Reunia agora seus próprios pedaços, catando algum caco que pudesse chamar a atenção de quem entrasse. Os fragmentos começavam a se reagrupar, embora o remendo ainda estivesse bastante visível, mesmo a olho nu. Acolhida pela proteção de uma trincheira emocional, preparava-se para atravessar o território de seu pior inimigo: a tristeza. Mas nunca fugia da guerra. Não era uma desertora, ainda que esses tenham sido seus mais dolorosos estilhaços.

 
 

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