FATALIDADE
Rutinaldo Miranda B. Junior
 

Esse cheiro de sangue. Cheiro de morte. Fedido e azedo. Dois corpos estira-dos no quarto. O dele sobre a cama. Face desfigurada pelo tiro no olho. Parece guardar um leve sorriso. Meu melhor amigo, a que ponto chegamos! Tirei sua vida. Melhor assim. Não agüentaria mais olhar pra sua cara. Morto, meu ódio por você diminui. Tenho até vontade de pedir desculpas. Afinal, tirei sua vida. Jovem cadáver de vinte e seis anos. Esse seu sorriso não me comove. Longe de mim alegria ou tristeza. Se esboço pena, é pra me sentir uma boa pessoa. Meu teatro. A verdade é que por sua morte sinto indiferença. Vinda de uma grande mágoa no meu peito. Se eu fosse corajoso, teria me matado. Na frente do dois. Bum! Um tiro aqui, na cabeça. Então, seus remorsos seriam minha vingança. A sua vergonha emergiria cada vez que seus olhares se cruzassem. Ah, se eu fosse corajoso...

E você, Helena? Que bom ter ouvido seu desespero! Diante dos seus gritos me tornei meu herói. Seus berros me deram firmeza no gatilho. Fundiram minha mágoa e minha vingança. Se eu lhe matasse primeiro, Helena, não teria graça. Meu prazer foi vê-la testemunhar a tragédia que causou. Com seu olhar de bicho acuado, insano. Vir para mim nua, braços abertos. Possuída pelo desespero. Chorando a sua desgraça. Nossa desgraça. E eu lhe dei, Helena, meu amor com três tiros no seu peito. Maior prova de afeto não houve. Mas, me doeu seu olhar na morte. Olhar de criança perdida. Medrosa. Perdendo o brilho em golfadas vermelhas.

Dois cadáveres num quarto de motel barato. Pele amarelada, sem vida. Não consigo me levantar dessa cadeira. Minha mente está tão cansada! Ouço uma gritaria no corredor. Desconhecidos aparecem na porta e logo fogem. Olham perplexos para mim. Hóspedes que atrapalhei suas transas. Penso que outros casais deviam estar também traindo. Sinto um orgulho dentro de mim. Ensinei o preço da traição. Sou carrasco. Sou professor. Reconheço que jogueI minha vida fora. Desce pelo ralo minha reputação de homem de bem. Desce junto com todo esse sangue.

Junto forças, saio do quarto. Vou fugir do motel. É preciso ser pragmático. Evitar o flagrante a qualquer custo. Tenho uma nova vida para construir. Quero ser feliz. Encontrar alguém que me ame. De verdade. O que aconteceu é passado. Deve ser esquecido. Não sinto culpa. O importante é saber que fui vítima das circunstâncias. Protagonista de uma inevitável fatalidade.

 
 

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