CORPO ENTRE COPOS
Ivone Carvalho
 
 

Fechou a porta do apartamento quando saíram os últimos convidados. Suspirou. Sentia a mistura do cansaço, da satisfação por ter corrido tudo bem, do alívio por estar, agora, liberada para arrancar os sapatos que apertavam seus pés e as roupas que colavam no corpo. Tudo que merecia, nesse momento, era um belo banho e uma cama.

Voltou os olhos para o cenário que via à sua frente. A mesa que estivera farta, repleta de sobras. Garrafas vazias. Guardanapos amassados jogados nas mesas, no chão, na estante. Migalhas pisadas e massacradas no carpete que fora lavado naquela semana. Copos espalhados em todos os cantos do apartamento, até no banheiro!

Recolheu algumas garrafas, cobriu alguns pratos que continham sobras, colocou na geladeira alguns outros e o bolo que sobrara.

Apagou as luzes e dirigiu-se ao seu quarto, onde acendeu um incenso e uma vela decorativa, ligou o som colocando um CD de músicas clássicas, pois necessitava relaxar e queria tentar não pensar em tudo que martelava a sua cabeça durante toda a noite.

Tirou a roupa e foi para o banho, parando momentaneamente ante o espelho e, constatando seu ar cansado, removeu a maquiagem e soltou os cabelos.

Tomou um banho relaxante, tentando concentrar seus pensamentos nos amigos que ali estiveram, nas sonoras risadas que marcaram a festa, na alegria de todos que pareciam ter o objetivo de fazê-la esquecer um pouco a recente separação, buscando concentrá-la na comemoração do seu aniversário.

Na verdade ela não queria comemorar data alguma. Havia deixado claro que nada faria e nem sairia de casa, pois queria ficar sozinha. Não sabia que seus familiares haviam programado com alguns amigos que lhe fariam uma surpresa e, uma hora antes do horário combinado, sua mãe chegou com sua irmã, ambas com pacotes de doces e salgados e o bolo que ela mais gostava, pedindo-lhe que trocasse de roupa e se maquiasse, pois seus amigos logo chegariam.

A princípio ela ficou irritada, sentiu sua privacidade invadida, seus desejos contrariados e foi até um tanto agressiva com sua mãe que foi logo dizendo que a idéia partira de sua irmã que não se conformava em vê-la o tempo todo triste e sofrendo tanto.

Enfim, agora não restava outra alternativa senão a de se arrumar para receber as pessoas que tinham sido convidadas pela mãe e pela irmã, os seus amigos mais próximos que viriam com suas respectivas famílias.

Após o banho vestiu o robe de seda preta e voltou à sala para pegar uma garrafa de uísque, o copo e umas pedras de gelo. O hábito fê-la pegar dois copos sem se dar conta do que estava fazendo.

Voltou para o quarto, iluminado apenas pela vela, onde o perfume de rosas brancas, exalado pelo incenso, inspirava a paz. Quase em silêncio, Chopin invadia o ambiente com o seu Noturno.

Escovou os cabelos, serviu os dois copos com o uísque, colocando duas pedras de gelo em cada um deles, deixando a bandeja com a garrafa e o balde com gelo sobre a cama. Arrumou os travesseiros para que pudesse ficar semideitada, relaxando as pernas que pediam descanso.

E, agora, já não tinha como dispersar seus pensamentos. Agradecia, mentalmente, o propósito de todos que estiveram com ela naquela noite, da sua tão querida e preocupada mãe, da irmã que tanto amava. Mas, era impossível não se concentrar na única pessoa que ela fazia questão que estivesse com ela nesse dia e em todos os outros.

A única pessoa que não se fez presente, nem mesmo telefonou ou enviou qualquer mensagem. Talvez nem tivesse se lembrado do seu aniversário, talvez nem mesmo se lembrasse que ela existia.

E as lágrimas que ficaram contidas durante todo o dia e toda a noite, talvez porque ainda existia a esperança de que ele pudesse aparecer a qualquer momento, não mais ficaram guardadas e, uma a uma, rolaram de seus olhos lentamente, transformando-se, pouco depois, num pranto desesperador.

A saudade tinha se tornado insuportável, seu peito doía, obrigado que era a sufocar aquele infinito amor que transbordava o seu coração, que tinha sido descoberto num repente e que também num repente descobriu-se isolado, unilateral, ferido.

Ele se tornara o ar que ela respirava, o seu alimento, a sua alegria, a razão do seu viver. Ele dera sentido à sua vida e, sem ele, nada mais tinha beleza, graça, razão.

Quase sem sentir, o uísque do seu copo acabara e ela já tomava a bebida que tinha servido, sem perceber, para ele.

E os pensamentos machucavam seu coração, o vazio que a envolvia transformava-se num abismo que a separava da felicidade.

Não conseguia conter o pranto e entre um soluço e outro sorvia mais um gole da bebida. Embora nem sentisse mais o seu corpo, não queria dormir, porque acordada poderia pensar nele, recordar os momentos felizes que viveram juntos, reviver sua voz, seu sorriso, seus beijos, seus abraços, suas juras de amor.

Mais uma dose em cada copo. A música lhe fazia companhia, mas ela já quase não a ouvia, pois os seus sentimentos gritavam dentro de sua alma. Daria a vida para que ele estivesse ali com ela, amando-a como ela o amava.

Imaginava-o com outra e isso parecia rasgar seu coração. Era insuportável vislumbrar a possibilidade de, naquele momento, ela estar nos braços de outra mulher, fazendo as mesmas juras que lhe fizera, dando-lhe o carinho que sempre foi dela, entregando-se a um relacionamento como se ela não existisse e nunca tivesse existido.

A cabeça parecia que ia explodir. Precisava dormir, mas não queria. Não conseguia. E as lágrimas não aceitavam ser dominadas, rolando incessantemente em seu rosto.

Os copos já estavam vazios novamente e ela não conseguia vê-los assim. Só mais uma dose! Uma em cada copo!

Os discos já não tocavam, o perfume de rosas ainda inundava o quarto e seu corpo jazia inerte sobre a cama.

Apenas os olhos, verdadeiras cachoeiras, deviam estar vivos, pois o coração sangrava e parecia estar morrendo aos poucos...

Adormeceu entre os copos vazios, onde uma pedra de gelo derretia lentamente...

 
 

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