A CONSTELAÇÃO DO CÃO
Luís Valise
 

O bocejo longuíssimo estirou os nervos do maxilar. Sentiu um formigamento nos cotovelos apoiados no beiral da janela. Também, pudera!, o relógio mostrava três e quinze da madrugada, e já-já dispararia seu sinal estridente indicando que era hora de levantar para ir à escola. Estivera com o olhar fixado no infinito desde a noite anterior, viajando dentro da própria cabeça em velocidade superior à da luz. Saltava de galáxia em galáxia em perseguição aos terríveis andróides seqüestradores de Loredana, sua andróida querida (Pérsio sabia que essa palavra não existia, mas recusava-se designa-la andróide por achar o termo carregado de uma androginia que não coadunava com suas preferências sexuais. Ele gostava era de fêmeas, e ponto final.). Antes de dormir por algumas horas, procurou fixar na memória o local exato onde a perseguição fora interrompida: nas proximidades da Pequena Nuvem de Magalhães, onde tudo recomeçaria na noite seguinte. Deitou-se, puxou a coberta até o queixo, e antes de perder a consciência sentiu Vostok acomodando-se junto aos seus pés.

Vostok morreu de velhice, quando Pérsio terminava a faculdade. Decidiu que não teria outro cachorro a substituir aquele que fora seu companheiro em intermináveis viagens interplanetárias. Manteve a promessa, e viajava desacompanhado por noites a dentro. Não encontrara uma Loredana na vida real, embora vivesse cercado de andróides, imbecis automatizados que não sabiam fazer senão falar em carros, dinheiro ou mulheres vãs. Agora Pérsio morava só, num apartamento de andar alto, num prédio afastado do centro, aonde o céu era mais limpo e mostrava suas intimidades sem o véu diáfano da poluição. Depois de jantar e assistir ao noticiário da TV, armava seu telescópio no tripé e buscava por Loredana nas proximidades de Ganimedes, na órbita de Júpiter. Depois que a encontrava, a história seguia seu rumo natural com diálogos, carinhos, perseguições, salvamentos, e não raro terminavam fazendo amor nas proximidades de Vênus. Pérsio dormia pouco todas as noites, e não tinha ânimo ou vontade para acompanhar os colegas em happy-hours. Quando a solidão ameaçou com sua presença etérea, Pérsio correu a um pet-shop e procurou outro companheiro de viagens intergaláticas. Apaixonou-se à primeira vista, e ela latiu correpondendo. Uma beagle de pelo acastanhado, pequena e saltitante, que foi batizada Galatéia, e logo acostumou-se a dormir junto aos seus pés.

Galatéia percebia quando Pérsio apenas entrava no prédio. Devia ser sexto-sentido, faro não podia ser, estava no vigésimo-primeiro andar. Tão logo ele chegava ao térreo ela punha-se a latir com alegria, embora os vizinhos não sentissem a mesma coisa. E não adiantava reclamar, ninguém tinha culpa, e o regulamento do prédio não proibia animais de estimação. Pérsio soltou a gravata, ajeitou o prato de comida que a empregada preparava, ligou o micro-ondas e serviu ração à Galatéia. Jantou defronte a TV, mas não prestava atenção ao noticiário, pensava na nossa galáxia em forma de espiral, conforme a classificação de Hubble. As outras formas eram: elípticas e irregulares. Para variar, levaria Loredana passear numa elíptica, embora essas lhe provocassem tontura. Deixou a louça suja dentro da pia. Pegou o tripé, assestou a luneta, encostou o olho no visor e girou a roda de foco. Uma cabeleira loira encheu a lente de promessas. Afastou a cabeça, viu que o aparelho estava apontado para o prédio em frente, para a sua cobertura. Recuou assustado, com receio de ser confundido com um voyeur. Apagou a luz da sala. Olhou novamente pelo visor, diminuiu o zoom, e viu a mulher por inteiro. Sentada no sofá, assistia televisão, fumava, e tinha ao lado uma taça de vinho tinto. Pérsio esqueceu as estrelas do céu. Acompanhava os movimentos da loira, que ora descobria as pernas, deixando de fora um par de coxas fenomenal, ora dava um gole na taça tinta de vinho, e passava a língua nos lábios antes da próxima tragada. Pérsio chamou-a Loredana, e noite após noite seguiu seus movimentos esguios, ondulantes, musicais. Os planetas foram trocados por pensamentos lascivos. Passou a ter sonhos agitados, a ponto de Galatéia preferir dormir no tapete.

Certa noite o telefone tocou. Ninguém ligava para ele, que de pronto esperou por notícia ruim.

- Pronto!

- Boa noite, Pérsio. A voz feminina era envolvente.

- Quem fala?

- Sou eu. A voz era calma, bem modulada.

- Eu quem?

- Você não adivinha? Olhe pela luneta. Pérsio tremeu involuntariamente, mas foi até a janela e olhou pelo visor. A loira da cobertura estava debruçada na sacada, e olhava direto para ele.

- Quem te deu meu número? E meu nome?

- Eu procurei saber. Quem procura, acha. Mas não precisa ficar nervoso.

- Eu não sou voyeur! Eu gosto de astronomia...

- Eu sei. Eu via você antes que você me visse. Também gosto de astronomia.

- Verdade? Você tem telescópio?

- Tenho. Aqui da minha cobertura o campo de visão é bem maior.

- Isso é um convite?

- Pode ser...

- Quando?

- Amanhã. Lá pelas dez. Pode trazer a cachorrinha.

- Como você sabe que é fêmea?

- Eu sei tudo... Até amanhã. E entrou, desligando o telefone e apagando a luz.

Pérsio foi cedo para a cama, mas não conseguia pegar no sono. Que mulherão! E chegada em astronomia! Quem espera sempre alcança, seu Pérsio, quem espera sempre alcança! Vestiu bermuda, camiseta, tênis, pegou a coleira, levou Galatéia para passear. A rua estava silenciosa, deserta, e a beagle se esbaldou com todos aqueles cheiros estranhos, buscou machos atrás de todos os postes, adorou seu dono mais que nunca. Tornou a dormir sobre as cobertas, sentindo o calor dos seus pés.

No outro dia, às dez da noite, Pérsio chegou na portaria do prédio da loira. O porteiro não estava, foi entrando, pegou o elevador, apertou o último andar. Ao chegar, tocou a campainha da única porta. Ela abriu com um sorriso aberto. Tinha estatura mediana, olhos de cor indefinida, entre o verde e o cinza. Galatéia latiu e correu para o sofá. Pérsio deu a bronca:

- Galatéia! O que a moça vai pensar? Desça já daí! A loira estendeu a mão:

- A moça tem nome: Virkla. E deixe a cachorrinha em paz, desde que ela não ataque meu gato, Galileu. Era um angorá gordo e calmo como um Buda.

Pérsio aceitou um copo de vinho, e sentiu-o maduro, de um gosto rubro, caloroso. Virkla mostrou bons conhecimentos sobre astronomia, e depois de algum tempo convidou-o para irem ao terraço. Seu telescópio era maior, mais potente. Pérsio sentiu-se inferiorizado, mas não fez comentário, apenas espiou pelo visor, e viu um número ainda maior de corpos iluminados. Como podia ser? Existiam várias centenas de bilhões de galáxias, cada uma com várias centenas de bilhões de estrelas... Bilhões! A pergunta era inevitável:

- Virkla, você acredita em vida em outros planetas, outros sistemas? A moça sorriu:

- E por que não? Seria muita pretensão acreditarmos sermos os únicos em meio a tudo isso... Venha, vamos tomar outro vinho.

Pérsio não estava acostumado a beber, por isso quando a sala começou a rodar ele não se assustou. Em compensação, quando tornou a abrir os olhos seu coração quis sair pela boca. Estava deitado sobre uma mesa, num ambiente fortemente iluminado. As paredes eram de um metal estranho, opaco, denso, que não refletiam a luz. Sentia um zumbido leve e contínuo nos ouvidos. Alguém, ou algo, aproximou-se. Pérsio não via, mas podia sentir. Percebeu um pedido para que ficasse calmo. Não ouvia, sentia o pedido diretamente na mente. Estava confuso. Pensou onde poderia estar. Outra vez sentiu a resposta diretamente dentro do cérebro: Estás em Triangulum. Triangulum? Triangulum Australes é uma galáxia ao norte de Áries, nomeada por Joahnn Bayer no início do século XVII. Claro que estava sonhando. Logo apareceria Loredana, e depois de alguns combates voariam em direção a Vênus, e em seguida acordaria exausto e com a cueca manchada. Era sempre assim, não era? Uma voz, que não era uma voz, ecoou dentro de sua cabeça, perguntando quem era essa tal de Loredana. Ele conhecia esse timbre. Virkla! "Estou aqui." Pérsio buscou com os olhos, e nada viu a não ser a luz intensa que era absorvida pelas paredes grossas. "Bem aqui, do seu lado direito." Pérsio virou a cabeça. Nada. Outra frase brotou em seu cérebro: "Feche os olhos." Pérsio fechou os olhos, e viu Virkla ao seu lado. O rosto era o mesmo, mas não tinha cabelos, nem sobrancelhas. A boca se abria e fechava através de palhetas em formato de diafragma. Um perigo!, pensou, sorriu, e viu que ela também sorria, "Não se preocupe, aqui não fazemos isso." Pérsiu sentiu-se ruborizado, e louco por acordar. Aquele sonho não estava sendo agradável. "Calma, você já vai voltar. Falta pouco." A mesa inclinou-se para a frente, ficando em ângulo de quarenta e cinco graus em relação ao solo. O zumbido aumentou de intensidade. Pérsio, sempre de olhos fechados, virou a cabeça para a esquerda. Um braço mecânico aproximava-se de sua cabeça, com uma broca na ponta. A broca girava numa velocidade assustadora! "Calma. Você não vai sentir nada." Pérsio sentiu vontade de urinar, mas não queria molhar a cama. "Pode relaxar a bexiga." Como ela sabia? A broca encostou acima da sua orelha, o zumbido entrou no cérebro. Pérsiu deixou a urina correr por suas pernas. Não doía, mas ele queria acordar! Sentiu o sangue quente descendo pelo pescoço. Achou que ia morrer. "Calma. Está tudo sob controle. Já vai acabar. Pronto."

A mesa voltou à posição inicial. "Você já vai acordar. Antes, me diga: quem é Loredana?" Pérsio procurou não pensar. Inutilmente. Sentiu Virkla aproximar o diafragma da sua boca. As palhetas se abriram, e tocaram seus lábios. Pérsio ficou rígido, paralisado. Seus lábios se umedeceram. Sua cabeça sentiu: "Adeus. Boa viagem."

Pérsio acordou sentado em sua cama. Suava bastante. Ergueu a colcha, conferiu o colchão, sentiu que não estava mijado. No entanto, fora tão real... Galatéia não estava sobre a cama. Chamou:

- Galatéia! Aqui! Vem, querida! Nada. Silêncio. Levantou-se, andou até a sala, olhou a cozinha, a área de serviço, nenhum sinal da cachorra. Insistiu: GALATÉIA! Nada.

Olhou-se no espelho do banheiro. A barba estava crescida de uns três dias. Como, se ele se barbeava todas as manhãs? Voltou para o quarto, tentando entender o que se passava. Vestiu-se rapidamente. Desceu. Na portaria perguntou ao zelador se vira Galatéia. A resposta foi negativa. Saiu do prédio. Chamou-a pela rua. Viu que estava defronte ao prédio onde morava Virkla. Entrou, foi atendido pelo porteiro. Perguntou pela moradora da cobertura. O outro olhou-o espantado:

- Moço, a cobertura está vazia há seis meses. Não tem ninguém lá.

- Como, não tem ninguém? E a Dona Virkla, aquela loira bonita?

- Loira? Virkla? Não conheço. Nunca vi. A cobertura está vazia. Pode ir ver.

Pérsio tomou o elevador, subiu, abriu a porta, a sala estava vazia e empoeirada. Correu para o terraço, que tinha aspecto de abandono. Desceu aturdido. Voltou para casa. Que sonho louco! Mas, cadê Galatéia? Entrou no quarto, olhou debaixo da cama, nem sinal. Sentou-se. Quando viu seu travesseiro, um arrepio percorreu todo o seu corpo: uma mancha de sangue borrava o lado esquerdo.

Passou todo o dia sentado no sofá, como um zumbi. Quando enfim escureceu, apontou seu telescópio para a constelação de Áries, e depois para além, muito além, onde uma pequeníssima mancha esbranquiçada reunia os bilhões de estrelas de Triangulum Australe. Galatéia estava lá.

 
 

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