NO AVESSO DO AVESSO
José Luís Nóbrega
 
 

O criado não disse uma palavra. Continuou ali, como um criado-mudo. A cabeceira quase perdeu a cabeça ao ver a cena que se passava sobre a cama. A luz fria, mesmo apagada, quase floresceu de vergonha. O abajur não bajulava ninguém, apenas iluminava bem fraquinho o ambiente, enquanto o lustre, todo lustroso, descansava sem força. O Benjamim também sonhava ser beijado. O trilho da cortina por pouco não saiu dos trilhos, mas foi contido pelo terminal, que não via a hora pra que tudo... terminasse. O forro desforrou os anos de visão encoberta pela cortina, que agora aberta, perdia o que de melhor acontecia no centro do quarto, que em fogo, queima no quinto de um inferno de perversões.

A água no copo nem pensou que poderia ser benta, preferindo manter-se cristalina para ver o que acontecia. O guarda-roupa viu toda a roupa que guardara com tanto carinho, e que naquele momento, encontrava-se espalhada pelo chão. O mancebo até se esqueceu que vivia amancebado, e achando aquilo tudo um pecado, continuou no seu canto, encostado na penteadeira que se despenteava toda de aflição ao ver sua dona na maior perdição.

A cinta-liga permaneceu ligada a tudo que acontecia. A meia-calça sentiu-se constrangida por estar ali, no chão, junto à sua prima meia, e sua tia-avó calça. O capacho, servil como sempre, protegeu do chão frio os quatro pés descalços que o pisavam. O chinelo não se sentiu assim um pé-de-chinelo, mesmo porque, os pés, naquele momento, nem pensariam em querer sua companhia.

O espelho viu que a coisa estava ficando feia, mas achou melhor não mudar a visão das coisas. O trinco tremia tanto que se controlou pra não trincar. A manga da camisa preferia estar em uma mangueira qualquer, menos ali, perdida no meio daquela saia justa, mas muito saidinha.

O roupão enxugou os pingos de suor da testa. A gaveta permaneceu de boca fechada. O relógio tentava dizer algo, mas só se ouvia o tiquetaque do seu coração.

A camisa concebida em Vênus foi chamada, mas foi logo esquecida. Nem reclamou, pois tinha medo de visitar o Céu da boca de uma Lua qualquer, ou ser ferida pelos rubis dos anéis de Saturno. A maçaneta até tentou avisar, mas quando se deu conta, o caminho já estava aberto. O interruptor foi acionado, e com ele não teve conversa, foi logo despertando o lustre que abriu os olhos lustrosos com a força que brotou do seu interior. A soleira quis entrar de sola, mas ao sentir que dois pés passavam sobre ela, e que outros quatro ainda pisavam seu amigo capacho, avisou o portal pra não ficar ali parado feito uma porta. A colher lá da cozinha escutou o estardalhaço, mas também não quis se meter. Em briga de marido e mulher, como já dizia a experiente faca, era melhor ela ficar bem longe. Deixou a solução do problema para o vizinho punhal, que de supetão, foi arrancado do armário...

 
 

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