MEMÓRIAS PÓSTUMAS
(singela homenagem a Machado de Assis)
Luís Augusto Marcelino
 

Minha mulher está de preto, o que me estranha muito. Sempre afirmou que detestava roupas pretas durante o dia. O preto, na moda, fora feito para a noite - ela afirmava. Para as festas que patrocinávamos em nossa casa no Pacaembu. Faz tão pouco tempo e já sinto falta da minha casa. Imensa, construída há mais de quarenta anos, no topo de uma colina urbana no bairro nobre paulista. Árvores a rodeiam. Há seguranças por todas as imediações. Não conheci meus vizinhos, que moram há oitenta, noventa metros do meu cantinho. Soube que um deles é empresário do ramo da Saúde. Não sei ao certo se é dono de clínica ou se é apenas um fornecedor de medicamentos e apetrechos médicos para hospitais do governo. Dizem que ele é tão rico quanto eu. Mas, ao contrário de mim, parece ser um mão-de-vaca. Lembro que foi o único que se recusou a contratar uma empresa de segurança para rondar as ruas do bairro, ainda na década de 80. Dizia que era função do Estado. Mentira! Era para não soltar umas migalhas de sua fortuna. Não era meu contemporâneo. Ao contrário, muito mais jovem. Vinte, vinte e cinco anos mais novo. Sua mulher - eu também soube pelas conversas dos meus empregados - era feia de doer. Quase uma Julia Roberts ao avesso, pela descrição que minha cozinheira fizera. Só fui conhecê-lo hoje. Estranho ele estar lá. Mas, nessas horas, tudo parece se tornar compreensível. Só faltou segurar uma das alças. Deu entrevistas, ficou cabisbaixo, consolou Monique e meus filhos, rezou, aproximou-se do caixão, ajeitou a gola da minha camisa branca, pediu para curiosos se afastarem. Só faltou beijar minha face gélida. É interessante esta condição de morto. Os sentidos ficam mais apurados. Percebe-se tudo o que está acontecendo ao redor. O vereador Alcides era um dos mais enfáticos ao dar declarações sobre mim. Fez de tudo para se aproximar do meu filho mais velho, Ricardo, que supostamente tomaria conta dos meus negócios. Por dentro, o vereador estava radiante. Tinha certeza de que, com minha morte, conseguiria do meu primogênito as verbas para bancar a campanha da sua reeleição.

Monique estava linda, deslumbrante, ainda que vestida sob uma cor que detestava para as manhãs. No auge dos seus vinte e sete anos - mesma idade do meu caçula, Quinzinho (ele detestava o primeiro nome, que era uma homenagem ao meu pai, Joaquim Henrique Ferreira Machado), não deixou nenhum detalhe passar incólume. Tudo estava perfeito. Flores, imprensa, convidados VIP, uma pequena orquestra tocando as músicas que eu gostava. Quer dizer, as músicas que ela gostava e que eu tolerava. O cardeal de São Paulo fora convidado a fazer as últimas preces, mas não pôde vir por causa de uma forte gripe que o deixou de cama. Cogitaram chamar o padre Marcelo Rossi, mas ele estava nas gravações de seu último CD "no mesmo estúdio usado pelos Beatles" - já famosos - em Nova Iorque. O celular de Monique tocou. Sempre me recusei a comprar um celular. Especialmente porque não sabia onde colocá-lo. Minha esposa sempre foi louca por celulares. Desde o primeiro que surgiu. Trocava-o a cada dois meses. Vinha sorridente anunciar seu novo aparelho. "Este aqui faz isso, o outro não fazia". Eu sorria. Se ela era feliz com as potencialidades do celular, por que eu haveria de me intrometer? Eu depositava cinco mil reais por mês na conta de Monique, apenas para ela comprar suas coisas. Era fascinada por compras, Monique. Seu nome verdadeiro era Maria Lúcia. Veio do interior de São Paulo para ser modelo. Arrumou uma boquinha numa feira de livros. Eu estava lá. Comprei uns dez exemplares só para ficar contemplando seus radiantes olhos azuis. Havia três anos que tinha me separado, minha primeira esposa foi para o exterior. Os garotos quiseram ficar no Brasil. Eu não agüentava mais a solidão da casa do Pacaembu. Casamo-nos em outubro de 1997. Não tivemos filhos. Ela queria muito ter um filho. Mas fiz vasectomia pouco antes. Temia engravidar uma piranha qualquer durante a entressafra de Rita - a mãe dos meus filhos - e Monique. Houve uma época em que cogitamos adotar um guri. Mas desisti. Melhor dizendo, meu advogado, Dr. Herculano, fez-me desistir. Ela se afastou do caixão ao sentir a vibração do aparelho. Vi-a enxugando uma lágrima solitária que escorria sob seus óculos escuros. Foi para um canto. Sua irmã, tentando confortá-la, foi ao seu encontro. Mas foi dispensada. Não lembrava daquele novo celular de Monique. Pareceu-me, do ângulo que pude ver, que era prateado. Nunca tinha visto um daqueles! De fato, pareceu-me bonito e moderno. Ela falava muito baixo. Baixo o suficiente para que ninguém, exceto eu e meus novos dotes extrasensoriais, pudesse ouvir. Mauro, meu sobrinho engenheiro, ligara para Monique de Buenos Aires. Estava num congresso internacional e queria lhe prestar suas condolências. E aproveitar o ensejo para reafirmar o tesão que estava sentindo ao ouvir a voz da doce tia. Viviam um caso há seis meses. Não era o primeiro caso de Monique, mas parecia o mais sério. Ele ressaltava, ao telefone, a maciez de sua pele, o beijo ardente, as coxas roliças. Perguntou se ela estava de calcinha preta também. Ela sorriu disfarçadamente. Respondeu que sim. Que tinha rendas em formato de flores. E pediu para ele desligar logo, porque ela já se sentia molhada. Herculano chegou perto. Ela dissimulou, fingiu estar conversando com uma amiga. "Não vai dar para ir ao seu chá, Eleonora!..." Herculano nunca disfarçou seu olhar malicioso para as pernas da minha mulher. Nem para os seus decotes radicais. Tentava, o pobre. Mas não conseguia. Abraçou-a fraternalmente, querendo consolá-la pela perda irreparável. Ela chorou copiosamente, de novo. Pediu o amparo do peito pelado de Herculano. Ele sentiu seus seios amassarem vagarosamente contra seu tórax. Quase se excitou. Porém, levou-a de volta à minha presença estática.

Quinzinho trouxera seu amigo Paulo Roberto. Chorava feito criança, meu caçula. Não nos falávamos há muitos anos, desde que ele largou a faculdade de Direito e resolveu ser diretor de teatro. Prometi-lhe, na época, caso não cometesse uma tolice daquela, mudar a partilha do meu testamento. Propus que ficasse com 60%, mas ele não topou. "Você não entende, pai..." Eu suspeitava, mas ainda cria que pudesse reverter a coisa. Não fazia parte dos meus planos ter um filho homossexual. Disse que entendia, mas que ele poderia voltar ao normal. Eu mesmo tinha um amigo meio transviado na adolescência mas que, depois que seu pai morreu, ele tomou as rédeas dos negócios, casou, teve três filhos e foi avô. Quem sabe minha morte sensibilizasse Quinzinho? Ricardo olhava o irmão com um ar de descaso. Minha nora, Lílian, já fazia as contas do que poderia comprar depois que aquilo tudo passasse. Imaginava que a divisão de bens não fosse igualitária. Certamente o marido herdaria uma fatia maior pelo fato de tocar a holding há tanto tempo. Para a viúva meretriz e para o cunhado bichinha, sobrariam no máximo 30%. Sem os impostos. Lílian era Contadora. Ricardo odiava a mulher, exceto pelo fato de ela conseguir transformá-lo num ás na arte de triplicar dinheiro. E, para melhorar a situação, eu acabara de morrer. Nem mesmo eu sei ao certo o quanto sou rico. É bem provável que Herculano saiba todos os bens que possuo. Além da casa no Pacaembu tenho uma ilha particular em Ubatuba. Uma praia em Búzios. Dezenas de apartamentos em São Paulo e Rio de Janeiro. Algumas fazendas no coração do Brasil. Um jatinho comercial que, por ironia do destino, foi construído pela Bombardier. Se eu soubesse que os canadenses armariam todo aquele estardalhaço, teria comprado da Embraer. Falha minha, mas fazer o quê? Meu filho e minha nora, juntos, certamente triplicariam minha fortuna e a deixariam para os meus dois netos, Gustavo e Guilherme. Mas não sei a que custa.

Eu não esperava morrer porque tinha feito um check-up em Cleveland há poucos meses. Tudo em cima. Coração, pressão sangüínea, articulações, sistema respiratório. A única coisa que não funcionava bem era minha vista. E me recusava a usar lentes ou fazer qualquer tipo de cirurgia nos olhos. Por isso mesmo carregava meus espessos óculos de grau. Um na cara outro na maleta executiva. Tinha parado de fumar há quase vinte anos e só bebia vinho. Uma taça de vinho tinto por dia, antes do jantar. A pequena academia montada na mansão do Pacaembu era responsável pela minha ótima condição física. Corri as últimas oito São Silvestre anonimamente, driblando a imprensa. Meus amigos Moraes e Diniz sempre estiveram na mídia. Eu, ao contrário, fiquei avesso aos holofotes das tv´s e jornais. Lembro do dia em que Moraes veio me pedir dinheiro emprestado. "Tudo bem, Antônio. Amanhã transfiro para sua conta." Toninho estava lá no meu funeral. E como se tratava de um acordo de cavalheiros - até mesmo Herculano desconhecia o empréstimo - , meu amigo ficara alguns milhões de reais mais rico. Para mim, a morte foi realmente surpreendente. E foi justo no momento em que decidi fazer alguma coisa com todo o dinheiro que acumulei na vida. Está certo que sofri uma influência do Ricardo para fazer marketing social. Antes disso, porém, dessa pressão do primogênito, eu concluíra que tinha dinheiro demais para ficar só pra mim e pra minha família. Resolvi criar minha fundação. Fundação Machado. Núcleos de lazer, esporte e cultura erguidos nos bairros periféricos da cidade. Fui à inauguração do primeiro deles. Fogos, bandeirinhas, faixas me homenageando, presidentes de ações comunitárias me saudando, colo e beijinhos de bebês desnutridos, manifestações da CUT e simpatizantes do PT contra mim. Um dos líderes comunitários quis lançar minha candidatura à prefeitura da cidade. Achei a idéia simpática, mas Monique acabou me desestimulando. A diretora de um dos centros que construí também estava no velório. Meio apática, meio deslocada. Acabou se aproximando de Alzira, minha cozinheira. No final das contas, saiu com uma receita de mousse de maracujá.

Os funcionários da funerária, enfim, cobriram o caixão. Estranho, mas nada escureceu. Continuei "enxergando" tudo o que se passava. Não posso me mexer, e isso é horrível porque estou com uma coceira irritante na região das nádegas. Quinzinho se entregou aos braços de Paulo Roberto, o que seria constrangedor se eu estivesse do lado de fora. Chorou mais veementemente. Sacou um lenço branco do bolso da camisa larga de cetim e tentou enxugar as lágrimas. Pena eu não poder mais mudar o testamento, acho que o guri realmente gostava de mim. Ricardo fez questão de segurar uma das alças. Herculano também. Alzira afirmou que nunca teve um patrão tão bom, e que não sabia o que seria da sua vida sem mim na casa, porque a patroa era uma cascavel de marca maior. Por intervenção de Quinzinho, a orquestra começou a tocar o Bolero de Ravel - que era uma das minhas favoritas. Agora que reparei que a gravata de Herculano é simplesmente ridícula! Várias vezes tinha chamado sua atenção para suas invenções moderninhas. "Não pega bem para a sua idade, Herculano... - eu dizia". Monique deixou as pessoas se afastarem e ligou para o amante. Disse que estava faltando pouco. Desejei sair daquele invólucro, tomar o celular de Monique, dar-lhe um bofetão na cara e cortar sua mesada. E mais: dar um par de aliança para Quinzinho e Paulo Roberto, colocá-los à frente das empresas, rasgar a gravata do Herculano, dar umas palmadas na bunda do Ricardo, mandar minha nora ir trabalhar no Tribunal de Contas da União e saborear a suculenta feijoada da Alzira. Mas não posso fazer mais nada. Mais nada.

 
 

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