ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE
Luís Valise
 

Não sabia o que era pior: o sapato apertado, ou a gota de suor que escorria pelo pescoço e manchava o colarinho da camisa azulzinha. Ou a cara dos pais da Thaís, duas caveiras com olhos de fogo sobre sorrisos de gelo. Eles nunca se conformaram com aquele namoro. Achavam que a filha não teria futuro ao seu lado, só porque ele era pobre, só porque ele era pardo, e PM. Soldado raso, que nunca chegava atrasado, que nunca aceitava propina, e nem matava sem motivo. Se os pais da Thaís soubessem que ele só matava por motivo justo, talvez ao menos tentassem esconder o descontentamento, a contrariedade, o desprezo. Mas, não. Nem ali, no altar, disfarçavam o mal-estar que sentiam na sua presença. Bem que ele prevenira sua família:

- Não reparem nos pais da Thaís, os elementos parecem antipáticos, e são, mesmo.

Claro que eles nem desconfiavam que eram tratados por "elementos". E os pais do Ananias já haviam notado aquela frieza, primeiro na festa de noivado, quando ficaram abandonados num canto da casa, e agora, na chegada à igreja. Por coincidência chegaram ao mesmo tempo que o senhor Menezes e a dona Áurea, que fingiram não reconhece-los e só os cumprimentaram já no altar. Ananias fez que não notou, mas bem que viu sua mãe segurando uma lágrima de vergonha ou de raiva, e aquilo só fez piorar a dor nos pés. Aquela era uma das tardes mais quentes do ano, a Thaís estava atrasada, a camisa estava colando no corpo. Seu olhar cruzou com o do senhor Menezes, que virou a cabeça sem disfarçar o nojo de quem pensava "criar uma filha com tanto carinho prum merda desses..."

A vida é mesmo engraçada, e quando menos se espera pimba!, aconteceu. E calhou de acontecer justo quando Ananias estava dentro da viatura, esperando o cabo fazer um lanche na padaria do senhor Menezes. Era a primeira vez que ele tirava serviço naquela área. Thaís estava no caixa. Ele foi comprar cigarros, ela não quis cobrar. Ele insistiu em pagar. Ficaram naquele "não, senhor", "não, senhora" até ele reparar nos grandes olhos castanhos da moça. Ficou sem-graça, aceitou o maço e voltou para a viatura, deixando com ela um pedaço do pensamento. Deu de passar por lá em todas as rondas. No começo o senhor Menezes tratava-o bem, oferecia café, acreditando espantar os malandros. Quando deu pela coisa, já era tarde, Ananias pegava Thaís na saída da escola todas as noites. O pai ficou uma fera, a garota mentiu: "é só amizade, pai". Não era, e Thaís engravidou. O pai quis manda-la para Portugal, para sempre. A mãe chorava pelos cantos. Ananias assumiu:

- Eu caso.

O velho foi bem ignorante:

- De jeito nenhum!

Ananias insistiu:

- Eu caso.

Thaís resolveu:

- Eu quero!

Os pés estão em fogo, a camisa está molhada, a garganta está seca. O olhar de dona Áurea examina o vestido da mãe do Ananias. Um sorriso de mofo. Ananias examina o vestido da marafona. Não entende picas, mas faz ar de troça. A velha cochicha, o senhor Menezes olha para os sapatos do pai do Ananias. Ananias também olha. O bico está descascado e sujo de terra. Porra, custava o pai passar uma graxa? Vê que o pai tem o olhar de quem pede desculpas por ter nascido. Se arrepende, volta o olhar para o elemento, que está com um sorrisinho filho da puta. Pode sorrir, pensa, pode sorrir, tua filha vai ter que viver com o meu salário! O senhor Menezes fica sério de repente, como se tivesse lido o pensamento do outro. Súbito, um murmúrio. Ananias olha para a porta de entrada. Braço dado com o irmão mais velho, Thaís vem entrando lentamente. Começa a tocar a música escolhida, "Eu sei que vou te amar". Por alguns instantes Ananias se esquece dos elementos. Thaís está vestida de amarelo bem clarinho, a barriguinha estufada atrás do buquezinho de rosas cor-de-rosa. Ela sorri um sorriso largo, olhando ora para a esquerda, ora para a direita. Seu irmão também sorri, olhando para a frente. Os parentes não se misturam: os brancos de um lado, os pardos e pretos do outro. Misturados estão os amigos da PM, muitos com as mulheres e crianças, não é sempre que aparece um casório com festança. O elemento não economizou: única filha, o casamento tem que ter festa, seja lá com quem for. Ananias não esqueceu esse "seja lá com quem for".

Ananias desceu dois degraus e recebeu Thaís com um beijo no rosto. Pegou de leve sua mão, que lhe pareceu ainda mais branca. De frente para o padre, que olhou a barriga de Thaís e depois pra ele, que ficou vermelho por baixo da pele escura. Começou o ritual, Ananias etc. aceita Thaís etc. sim padre. Thaís etc. aceita Ananias etc. sim padre. Então blábláblá na saúde e na doença, na riqueza (quáquáquá) e na pobreza, para sempre. Ananias olhou de soslaio para os elementos, que choravam, também sentiu vontade de chorar, ouviu o padre para sempre, para sempre...

Depois dos cumprimentos entraram no carro, que parado sob o sol estava um forno. Os pés do Ananias doíam muito. O suor atravessava a camisa e manchava o paletó. Thaís acariciou a barriga e disse "Se for mulher será Jennifer". Ananias não disse nada, mas gostaria que fosse Vanda, como sua mãe. Pensou "Quem sabe, o próximo?", voltou-se para o comentário, mas calou-se ao ver que Thaís falava com a mãe pelo celular, "Claro, mamãe, a próxima será Áurea, como você". Ananias ponderou:

- Poxa, Thaisinha, eu queria tanto que a menina tivesse o nome da minha mãe...

- O quê?? Vanda?? Nem morta, meu filho, coisa mais cafona, antiga, brega...

- Também não é pra tanto, benzinho, Vanda até que é legal.

- Nem vem, Ananias, nem vem. Já basta um pai PM. Credo!

É muito raro um noivo matar a noiva dentro do carro de núpcias. O motorista viu pelo retrovisor Ananias esganando Thais, mas não pode fazer nada, a não ser dirigir direto pro Pronto Socorro, aonde ela já chegou morta. Ananias esperou a polícia dentro do carro. Hoje cumpre pena num quartel da PM. Trabalha na cozinha, e é centroavante do time dos viúvos. Com ou sem motivo.

 
 

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