PANQUECAS FRIAS
Adlai Hoartmann
 

Norminha teve um sonho ruim e acordou chorando, acha até que deu um grito de horror mas tem dúvidas se gritou no sonho ou se o grito se engasgou além do pesadelo. Ao seu lado, Nélio dormia o sono tranquilo de quem não tem o lugar para cair morto. Norminha acordou e não conseguiu dormir mais. Ficava extremamente ansiosa por não dormir, ouviu falar que suicidas são insones. Resolveu antecipar o remédio para a pressão alta, decerto a pressão estava nas vias de um derrame devido ao desassossego. A luz vermelha do rádio-relógio indicava 3 da manhã e ressonava baixinho a programação da madrugada com músicas antigas. A janela do quarto de dormir dava para o prédio ao lado, pela brecha da cortina viu que a luz no apartamento no sétimo andar estava ligada e outra também lá no quarto andar com o remelexo de luzes azuis da tevê. Não havia qualquer sinal de que Túlio estivesse acordado. Ontem Túlio pediu o telefone dela, ela não deu, é óbvio, apesar de hesitar, engasgar e sorrir sem graça, exatamente nessa ordem. Túlio era um homem feio, era isso que achava dele, além de achá-lo extremamente simpático, cortez e inteligente. As vezes ficava com raiva das investidas dele, Túlio você não tem vergonha? ora bolas sou uma uma senhora muito bem casada. Apertou os lábios e olhou para Nélio que dormia impávido colosso. As vezes Nélio parava de respirar, ficava uns 15 segundos como num mergulho rápido para dentro de um sonho, logo depois voltava a respirar ruidoso e grave como um caminhão em ponto morto prestes a morrer. Se Nélio morresse, ela morreria logo depois. Nélio gostava de panqueca fria e café sem açucar, há 25 anos de casamento sempre o mesmo café da manhã. Não seria hoje, apesar da data especial, que não seriam as especiais panquecas frias com café sem açucar no café da manhã. Calçou os chinelos, ajeitou os cabelos e os prendeu mais ou menos com duas presilhas com o firme propósito de lhe preparar a panqueca e deixar o café pronto aquecido na garrafa térmica. Na porta do quarto o gato acordado parecia que esperava por ela. Até a cozinha o gato, que se chamava Sinatra, se enroscou em suas pernas desesperado pelo seu carinho matinal, que ela nunca, nunca mesmo, deixava de oferecer. Foi só ao abrir a geladeira que percebeu que não tinha ovos. Levou um susto. Procurou no pequeno armário da cozinha, debaixo da pia, na despensa. Não havia um único ovo. Colocou a mão na testa do jeito de quem procura febre ou limpa suor e soltou um - Ué?, engasgado em uma dor sem lágrimas sentida dentro do peito. Ficou assim esfregando a mão no peito como sossegasse um bebê e andando de um lado para outro da cozinha sob o olhar curioso de Sinatra. Foi até a sala e deu de cara com Nélio que voltava do banheiro depois de sua usual mijada sonolenta. - O que foi que já está de pé? Norminha não disse nada. Ficou olhando para ele. Nélio voltou para a cama, não sem antes dizer: - Eu hein! Ela abriu a cortina da sala e a janela para tomar um golpe de ar da manhã, porque subitamente uma falta de ar lhe tomou de conta. Sentou no sofá, ligou o ventilador que estava sobre uma mesinha de canto. O gato deitou sobre seu pé. Ainda esfregava o peito como carinhasse um cão. Ficou alí até clarear, com o olhar perdido por entre os móveis e livros velhos da estante. Hoje ela fazia 76 anos, é uma pena que Nélio quase sempre se esquecesse e depois dissesse assim: Porque tu não me disse?

Ás 6 Nélio acordou, foi ao banheiro, voltou ao quarto, passou pela sala até a cozinha, voltou da cozinha até ao banheiro, ao quarto novamente, depois até a despensa, até parar na sala e dizer esfregando os óculos no pijama: onde estão meus chinelos?

- Nelinho...

- Não estavam no banheiro?

Norminha com a cara enterrada nas mãos, soluçou:

- Não temos ovos.

 
 

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