NEGRUMOSO
ou LAMBARIS FAMINTOS, ou NAÇÃO LIMPA MESMO?

Eduardo Prearo
 
 

Houve um pôr-do-sol há pouco ou então um sonho com um pôr-do-sol, uma bola de fogo imergindo em terra, um círculo feito em cor e caindo. Se é noite, não sei, só sei que desgravido. Um filho das trevas sai de mim, minha disgenia se revela. Há um bochorno até que suportável neste aposento que talvez não seja aposento, mas um cantinho do inferno com artrópodes rechinando bem próximos às orelhas. Não sei. O inferno não pode ser isso, é qualquer outra coisa pior do que isso. Estou faminta, deitada sobre um colchão de molas. Balanço. Sinto a maciez da lã de um cobertor, depois enfio o dedo em um buraco molhado situado em mim mesma. Cabeças enormes já sairam de mim, fui cortada. Meretriciava-me nas esquinas, sereia dos psius, uma linda mulher. Não sei o que é humildade, qualidade evocada por todos os cantos atualmente, não aguento mais o bochorno, a nervosidade. Quero sair agora, lá fora buzega ou será que aqui é lá fora? Bobice, deu-me vontade de cantar, de imitar Dalva. Acho que estou me apercebendo para a morte, se eu já não estiver morta. Eu era louça, louca não. Odeio esta pátria, odeio-a eternamente. Estou mais do que sedada por um doutor mediévico ou mais que envenenada por uma bruxa horrorosa e malvada. Lembro-me da infância...

--- A rosinha, a rosinha, a rosinha.

--- Menina, lave a rosinha amanhã, agora durma!

--- Não, papai, a rosinha, a rosinha, a rosinha!

Será que vou morrer? Estou com fome, não tenho a quem pedir, sou um desses lambaris famintos. Do nariz escorre o que de dentre as pernas escorre também, ou seja, sangue. Não me comunico bem, as pessoas sempre acham que não me comunico bem, elas acham que sou tímida em demasia. Pessoas desconhecidas nas ruas me perseguem, ou melhor, perseguiam-me, pois agora estou aqui não sei onde. Essas pessoas desconhecidas me perseguem (verbo proibido) e vou morrer frustrada por não conseguir me vingar delas. Mas Deus é mais. Odeio, repito, odeio esta nação até o último instante de minha vida, em parte por causa desses desconhecidos nunca culpados que têm o apoio da alucinação e da persecutoriedade da psiquiatria. Da alma estivo a podrigueira que vai não sei pra onde, talvez pra alguma ilha. Sou malthusiana, icástica. O desenho do país é nojento.

Ouço um barulho de passos, vão vir com a luz artificial, não quero olhar para essa luz artificial, americana! O cheiro das velas americanas é enjoativo. Uma porta mais ou menos enorme se abre lentamente, então aqui há uma porta, aqui é dentro e não fora.

--- Levanta-se e vista isto aqui.

--- Vieram me tirar daqui, deste lugar, desta escuridão, quiçá desta pátria porca? Oh, estou em uma quarto! E nua!

--- Vista-se logo, vossa alteza. Daqui a pouco a levarão, quinze minutos antes da sexta hora. Chegou sua hora mesmo!

--- Meu dedo está na boca, soldado, olhe!

--- Prometo que te fodo morta.

 

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