MANUSCRITO ENCONTRADO
NUM FUNDO DE BAÚ
Raymundo Silveira
 
 

Nasci pouco mulher. Numa época em que isso significava uma sentença de prisão perpétua. Por isso, nunca soube o que é viver. Para mim, existir sempre foi uma contínua espera por algo que jamais chegaria. "Esperando Godot". Perdi meu tempo para o próprio tempo numa partida de esperanças partidas. Há muito já se esgotou o meu estoque de futuros.

Portanto, não espero mais. O ócio de nada esperar vale mais do que o ônus desta ilusão inútil. Essa afirmação não é um brado de revolta. É, no máximo, um queixume por ter chegado, sozinha, a essa conclusão. Um lamento tardio pelo que podia ter sido e não fui. Se me tivessem ensinado a chegar a tal conclusão desde menina, teria sido mais útil do que a aprendizagem que me deram.

Morangos não brotam no deserto. Mas bastaria uma muda transplantada no oásis do meu desejo, para tê-lo transformado, há muitos anos, num fértil pomar de querência. E o travo do inconformismo teria sido mais suportável. Ou, quem sabe, sequer tivesse existido. Mas me queriam casada, alienada, fútil, dependente. Um fardo a ser carregado. Ou, pior ainda, uma escrava a carregar o fardo e o fadário dos caprichos alheios.

Hoje sou submissa por imposição. Mas livre por convicção. Descobri, sem nenhuma ajuda, que podia, através da escrita, externar os meus pensamentos. Por isso, jamais conseguirão me proibir de dizer o que penso. Ainda que ninguém leia o que escrevo. E nem eu ganhe nada com isso. Não importa. Não escrevo para alguém ler. Nem, muito menos, para ter. Escrevo para eu mesma ser. As palavras me libertam. Então, posso dizer que subjugaram o meu corpo e a minha alma. Nunca as minhas idéias.

A escrita, portanto, é o mais eficaz sucedâneo para a escravidão do tédio. Quando escrevo, a sensação de liberdade que experimento é indescritível. É como se jogasse fora de mim, toneladas de desilusão. Embora essa carga incômoda não seja substituída por um só grama de esperança inútil.

Além disso, escrever me faz sentir útil. Mais poderosa. Mais prestigiada. O poder que sinto é sobre mim mesma. O prestígio, perante mim mesma. Percebo que aquilo tão penosamente espremido da minha cabeça, não foi em vão. E isso me faz menos dócil. Menos infeliz. Mais livre. Muito mulher.

 
 

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