OS LIVROS NOVOS DO IMPERADOR
Raymundo Silveira
 
 

Nas montanhas geladas do Tibet havia um Império, cujo Imperador era muito vaidoso. Não se tratava destas vaidadezinhas comuns a todos os mortais. Era quase sobre-humana. Detentor absoluto do poder, possuía um tesouro incalculável. Incalculável para o tempo em que isto aconteceu. Porque se fosse hoje, um Pentium IV levaria alguns anos, mas, certamente, calcularia o montante. Então, achava que podia tudo E decidiu que seria também escritor.

"Ora, cogitava, se sou o dono do maior Império do Universo (para ele a Terra era o Universo), "se possuo tesouros que ninguém pode calcular, por que não posso ser também o escritor mais famoso do mundo?" E não perdeu tempo: passou a editar livros cujos títulos se referiam a todas as modalidades do conhecimento humano: filosofia, ciência, romances, poesia, memórias, ensaios, crítica, política e até literatura pornô. Alguns súditos, a princípio, desconfiaram, mas quando viram quase todo mundo lendo, começaram a ler também. E os livros logo se tornaram best-sellers. Ou "besta-selas", como ousava chamá-los o único oposicionista do Reino. Excetuando este dissidente imbecil (que mais tarde seria executado), não havia reinol que não comprasse.

Das editoras imperiais jorravam mais exemplares do que barris de petróleo, dos poços do Oriente Médio. Todos encadernados em couro, com o nome do autor bordado a ouro na capa e nas lombadas. Assim, permaneciam sempre novos e bem conservados. As obras reais tinham, além disso, uma peculiaridade surpreendente: podiam ser lidas no escuro. Portanto, eram vendidas como água no deserto. Havia comentários críticos favoráveis publicados nos principais periódicos. Alguns leitores adquiriam dois exemplares: um para ser lido no claro e outro, no escuro.

Numa resenha da obra mais famosa do monarca, "Da Importância De Ser Asbesto", dizia um crítico: "Mais uma vez Sua Majestade vem brindar os seus leitores, que são praticamente todos os súditos, com uma obra originalíssima. Nela, não há a retórica inconseqüente dos parvos. Não há também a linguagem non sense dos idiotas. Nem a verbosidade ininteligível dos mentecaptos. Tampouco, as idéias fixas dos obsessivo-compulsivos. Ou as aberrações chocantes dos tarados. E muito menos, o lugar comum dos imbecis. Este monumento literário é produto de uma mente sensata, inteligente e perspicaz. E é tão imaculado quanto os livros sagrados. Com a vantagem de servir a crentes e infiéis. Pois se trata de uma obra tão pura e singular, que apenas homens de raro talento são capazes de produzir. O texto não se perde em divagações insensatas. Não tece lucubrações de natureza duvidosa. Nem possui a linguagem sofisticada dos que têm pretensões à erudição. Trata-se de um trabalho digno do mais versátil escritor, pois se destina tanto ao público infantil quanto a qualquer adulto genial. Pode ser, portanto, admirado pelos sábios e pelos homens simples do povo. Por letrados e apedeutas. E o mais importante: mesmo com toda essa versatilidade, é a mais original das obras com que este crítico algum dia já se deparou".

A resenha ainda citava outros méritos da publicação que se vai resumir a fim de não tornar essa história muito longa: "Voltaire jamais escreveria um livro como este. Platão, Sócrates e Aristóteles nunca veriam nada semelhante. Balzac deve estar a se revirar de ódio no Père-Lachaise. Pois, com toda a sua caudalosa produção, nunca seria também capaz de escrever algo com tanta facilidade e vender com tamanho sucesso. Montesquieu, Montaigne, Madame de Stäel, Sthendal, Flaubert, Dostoiewski, Marcel Proust, Victor Hugo, Goethe, Thomas Mann, Oscar Wilde, Dickson, Rimbaud, Keats, Lord Byron e tantos outros gênios da literatura, da filosofia e da poesia tremeriam de inveja, pois não se sentiriam aptos a comercializar algo semelhante, à custa de tão pouco esforço".

Os livros do Imperador, como já se sabe, eram todos best-sellers. Ainda assim, quando os leitores viam comentários como esse, cada vez compravam mais. Reiteravam que não poderiam se limitar a adquirir um só exemplar. Pois, demais da dupla serventia claro/escuro, havia sempre o risco de se perder algum. E poderia existir, quem sabe, alguém não suficientemente sensato, ou sem dinheiro bastante, para adquirir o seu. E a estes seriam doados os volumes remanescentes. Isto é, se acaso sobrassem. A noite de autógrafos de "A Importância De Ser Asbesto" deu-se no salão oval do Palácio Imperial. Como este não comportava o número de pessoas convidadas, fez-se uma exceção. E o restante do público teve acesso também aos salões elipsóides, quadriculares, retangulares, losangulares e até esféricos ou globulares.

Estes últimos eram especialmente destinados às delegações de países ditos emergentes. Havia mais de cinco milhões de exemplares para serem vendidos. Como o Primeiro Ministro logo percebeu que Sua Majestade não daria conta de autografar tantos volumes, a única saída foi contratar crianças. Para isso, um batalhão de meninos foi submetido a treinamento intensivo para aprender a imitar a caligrafia do soberano. Havia, contudo, um dos garotos que não teve a chance de ser recrutado. Logo, não foi treinado. Ainda assim, fizera questão de colaborar, como voluntário de última hora.

Quando a multidão estava reunida, e o Imperador ia começar o discurso, o silêncio era absoluto. Se caísse um alfinete seria um estrondo. Nesse instante, a dita criança que não foi treinada, tomou um dos exemplares e folheou. "O livro do Rei está em branco!", gritou. E estava! Não havia um único que contivesse uma mácula, sequer, de tinta. Contudo, ninguém lhe deu ouvidos. Pelo contrário, a partir daquele episódio as idéias reais se disseminaram por todo o Império. Cada pessoa queria porque queria editar um livro de papel, embora dispensasse a capa de couro e a gravação em ouro. Mesmo assim custava caro.

Então, houve gente que penhorou diamantes, alguns venderam terras e gado, outros levantaram vultosos empréstimos bancários. Todos queriam ver o nome impresso na capa de um livro. Aqueles que, mesmo assim, não logravam êxito, se reuniam, faziam vaquinhas e editavam, conjuntamente, as suas obras. Justiça seja feita, ao contrário da farsa imperial, esses livros tinham conteúdo, sim. Alguns possuíam mesmo muito valor literário. Todavia, por causa de várias circunstancias, que não cabem analisar nessa história, ninguém comprava. Então, tiveram de ser incinerados porque faltava espaço para armazenagem. Pois até os sebos se recusavam a recebê-los. Isto é, mesmo dados eram caros.

 
 

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