NO ESCURO (?)
Tatiana Alves
 

Era noite novamente. Passou as mãos pelo rosto, removendo os vestígios deixados pelo sabão. Percebeu que uma nova ruga se formava, embora para ela isso não fizesse a menor diferença. Mesmo assim, não resistiu a passar o creme que adquirira impulsivamente, em uma dessas promoções anunciadas na tevê. Maquinalmente, executou os movimentos indicados e esticou o rosto, numa vaidade que nem possuía, mas que, de certa forma, parecia aproximá-la das demais mulheres. Esticou novamente o rosto, repuxando suavemente a pele.

A pele... Embora todos afirmassem que ela aparentava ser bem mais jovem do que realmente era - como ela poderia contestar? - ela sentia, pela textura da pele, o viço de outrora agora perdido. O tempo não perdoa, pensou, embora para ela o tempo sempre tivesse tido outra dimensão: acompanhara o crescimento dos irmãos menores pela mudança na voz e pela aspereza da barba onde antes havia uma pele tenra e macia. O cheiro dos hormônios, denotando a excitação da adolescência, também não passara despercebido ao seu olfato apurado. Somente o olhar de piedade que lhe lançavam não era notado, ainda que o tom de voz lhe permitisse detectá-lo. Conhecia ainda o cheiro da chuva, o ar pesado e opressivo de um dia abafado, e a tensão no ambiente e, ainda que não visse os desastres estéticos do velho tempo, sentia na carne os efeitos de sua passagem. Sua aquarela, contudo, era constituída apenas do breu da noite mais negra, e ela jamais tivera a lua cheia para amenizar a escuridão do soturno castelo onde vivia desde que nascera.

Nascera diferente. Sua mãe chorara dias seguidos, utilizando em demasia aquilo que a filha jamais poderia usar.

Jamais poderia usar seus olhos, e a doce memória que trazia nas veias era a do cheiro do bolo quente da avó, ou o do perfume da mãe, já morta, perfume que ainda hoje a fazia suspirar de saudades, ou ainda a da voz, que denunciava o medo ou o amor daqueles que a rodeavam.

Rodeavam-na desde pequena, como se aquela diferença a tornasse particularmente vulnerável. Esqueciam-se, contudo, de que a verdadeira luz vem de dentro, e essa ela possuía em excesso, numa profusão de emoções vertidas num arco-íris, tornando multicor o mundo de todos à sua volta.

 
 

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