CONFUSÕES
Edison Veiga Junior
 
 

Todo dia eu sou engolido por uma caixa que me vomita no térreo. Já ela desce escadas surrealistas mas enfrenta o mundo com as asas arrastando no chão.

Todo dia eu penso pensar que o pensamento pensa na gente. Já ela prefere ser concreta: quem roubou meu coração?

Todo dia eu tomo café com pão com jornal cheio de notícias de morte política futebol cultura tudo mesmo. Já ela assiste pela TV a novela da guerra.

Todo dia eu

***

Confissões arquivadas: "Meu aniversário de 19 anos, que acabo de viver, foi o mais estranho de todos. Decididamente o mais estranho. Estranho e recheado de mortes. O que
explica o fato de eu estar agora escrevendo este e-mail pra você num Word 6.0 (aquele pra Win95, manja?) muito tosco e desconfigurado, que fica dando mensagens de erro a torto e a direito com aquele apitinho ensurdecedor e renitente. E já é a segunda tentativa. O primeiro texto, quase pronto, foi pro espaço porque esta jurássica máquina desgraçada travou. E o teclado, maldito, é modelo americano - estou apanhando pra catar os acentos e cedilhas da vida."

***

Estava pensando sobre a pequenez da vida quando:

- Cataploft, vamos tomar café?

- Sim, Catapluft, vamos sim...

- Mas onde, Cataploft, onde?

- Ora, Catapluft, mais acima, mais acima...

- Não estou entendendo, Cat...

Cataploft! Olhando para cima, foram surpreendidos com uma rasteira. Era o Sr. Cobra, o chefe da empresa, aquela víbora que não permite conversas paralelas muito menos universos assim.

***

Confissões rasgadas (ou A Morte Número 1): "Noite de ontem, 29, sexta. Eu entro no carro, carona. Nota de falecimento, coluna de obituário: "o vô da Sicrana morreu hoje cedo". Como assim? Tão novinho, apenas 97 anos, flor da idade...

Sicrana é velha amiga, estudou comigo nos velhos tempos. Agora está em Londrina. Ou Sorocaba. Ou Paris, não sei ao certo. O que sei é que ela está. Em algum lugar, a Física garante. O certo é que teria de passar no velório, ao menos um pouquinho, cumprir aquele ritual de praxe instituído em nossa sociedade pequeno-burguesa pós-capitalista. Pelo menos os meus pêsames, as minhas condolências, etc. etc. etc.

O problema é o frio que me acomete nesta cidade que já não é mais minha. Meu corpo habituado ao inferno e aqui quase neva. Meus dedos agora, por exemplo, tropeçam trêmulos nas teclas porque está frio. Por isso cheguei aqui e não fui ao velório. O presunto que esfriasse lá mais um pouquinho, pois eu só vou cumprir minhas obrigações com a sociedade que insiste em viver pra falar mal dos outros amanhã, bem cedinho. Aí posso acompanhar o sepultamento, ainda que seja meu aniversário."

***

Uma vez eu fugi do útero da minha mãe só pra ver onde é que o mundo ia dar. Depois o relógio começou a girar girar girar sem lógica mesmo e eu cresci um homem com barbas escorregando pelas costas da imaginação porque me barbeio todo dia na verdade.

Conheci o amor numa noite inusitada. Foi como se num instante o que era átomo tivesse virado átimo. Ótimo.

E agora é assim...

***

Confissões pagãs (ou A Velhinha): "Foda mesmo foi acordar às 8h, tomar café e enfrentar o frio da manhã pensando em não chegar atrasado para o enterro. Legal isso, começar o aniversário com um enterro! Foda mesmo, aliás, foi sair da minha cama quentinha...

Vamos lá. No velório aconteciam os últimos preparativos para a marcha fúnebre que sairia em pouco tempo. Alguns vereadores tentavam roubar a atenção de amigos e familiares, certamente já pensando nas próximas eleições. O prefeito e a primeira-dama fingiam semblantes tristes. Uma das noras do falecido trajava um falso luto. Enfim, muitos figurões da sociedade estavam lá. O cara que morreu era importante: um grande fazendeiro. Toda a burguesia hipócrita de Sucupira estava lá. Metade de Sucupira estava lá.

E eu, pé-rapado, barbudo e maltrapilho. Apenas por consideração às netas, que são capítulo a parte.

Como era de se imaginar, dezenas de coroas caríssimas eram carregadas pela burguesia rica. Ou pelo menos que finge ser rica. É muito chique acompanhar o féretro carregando coroas perecíveis para depois jogá-las no defunto. Deve ser, penso eu. Coroas caras e caretas carregadas por coroas chatos e cornos.

Mas meu olhar se desviou rapidamente para uma velhinha. Ela carregava uma
mísera rosa. Não dessas rosas de floricultura, que vêm envoltas num plástico que termina em eno na química inorgânica. Não, ela carregava uma rosa colhida talvez no jardim da praça, talvez em seu próprio jardim. Fiquei pensando que a velhinha podia ter cultivado aquela rosa para uma ocasião especial, e me emocionei.

Fiquei imaginando quem seria aquela velhinha. Pelas roupas, parecia ser bem pobre. Pela aparência descuidada, também. Ela destoava um pouco do público que acompanhava o sepultamento. Carregava a rosa entre as mãos, entre os dedos, como se a rosa fosse se quebrar, como se as pétalas fossem se desprender, se desgarrar, se despetalar. Como se os dedos também fossem voar. Eu fiquei comovido e não consegui parar de olhar aquela velhinha cujo olhar estava embotado de um quê seco, parecia que tinha sede e nunca mais ia conseguir chorar. A velhinha tinha os olhos calejados pela vida. Jurei pra mim mesmo: um dia ainda vou escrever uma crônica, a mais linda crônica, sobre essa velhinha e sua rosa para um defunto. Ainda pretendo cumprir o juramento.

Mas qual a relação da velhinha com o velho morto? Não conseguia parar de pensar. Amor? Amizade? Paixão platônica? Paixão fulminante? Gratidão? Favor? Creio que nunca vou saber. Aliás, nunca vou querer saber para não quebrar a poesia de vidro desse momento inesquecível.

E foi bonito ver a velhinha jogando sua rosa por cima do caixão, quando este ia sendo coberto de terra. Foi muito, mas muito mais bonito do que aquelas imensas coroas sem coração. Aquelas coroas de gente hipócrita."

***

Minha obra brota bruta. Só depois de muito britar é que se abre e cadabra. Então acaba.

***

Confissões amarelas: "A outra morte daquele dia foi extremamente trágica. Meu computador antigo, meu Pentium 100 tão íntimo, teve morte cerebral."

***

E tem aquela do cara que sempre acordava com a cara virada do avesso. Aí teve um dia que ele pulou fora do espelho e começou a viver de verdade.

 
 

email do autor