SINUOSIDADES
Eduardo Selga
 

É. Não muito mais do que lastimar é o que me resta ao perceber: todos estamos, numa escala gigantesca e imensurável, acovardando-nos perante os Golias erguidos às dúzias em nossas vidas, carrancas do São Francisco; portamo-nos estivéssemos numa canoa sem remos, pleno rio fogoso e encachoeirado, não querendo enxergar a estrada má: o extermínio ao cair numa catarata abissal. Inexiste hoje aquela juventude pertencente a outros dias, ao ontem, quando o tempo espreguiçava-se em décadas mais legíveis. Cadê? Onde discordâncias autênticas ou propostas para um planeta de fato novo e não apenas renovado, corrigido? Meu reino fantasioso por contestações substanciais! Idéias? Outras e em tudo diversas! Inclusive dúvidas que ponham em xeque o Senhor, enquanto idéia abstrata. Ele que em territórios a oeste de Greenwich quase sempre é insinuado como uma espécie de árbitro parcial, sem constrangimentos torcedor fanático pelo time todo poderoso. Ostensivamente ou empregando sutilezas. Graças a Deus, deveríamos ainda assim dizer? A mídia, outra força a serviço dos eternos mandatários da Terra, a mídia reescreveu e gravou a ferros em nosso tecido cerebral o sinônimo de juventude: enquadra-se agora na nova edição revista e atualizada do termo todo homem ou mulher que, com o potencial criativo inerente à idade (e que se não domesticado é um perigo), propuser-se manter incólume a estrutura de aço, titânio, sonhos moídos e gentes laceradas pelas infelicidades permanentes e que foi erguida ao longo dos tempos com parcimônia artesã. Há também outra estratégia, das mais arguciosas, ressalte-se: permite-se à juventude, num ilusório laivo de benevolência, alterar da mansão decadente apenas a fachada e aspergir essências florais em cada centímetro para que o odor pútrido dos cômodos permaneça inalterado. Porque a podridão é fundamental aos pilares da estrutura. Muito a propósito, Elis Regina quando cantou "(...) hoje eu sei que quem meu deu a idéia de uma nova consciência e juventude está em casa, guardado por Deus, contando o vil metal (...)".

Quando o Doutor Márquetim percebeu-se com autoridade e influência na opinião pública além do suposto, beatificou a si mesmo. Atualmente faz milagres. Entendeu com cristalina nitidez o poder das imagens que a palavra produz: o subjuntivo em seu tempo presente; o modo imperativo, conjugação que torna os verbos grosseiros, opressores. Então, fruto desse achado singularissimamente simples e dominador, surpreendemo-nos meio ao bombardeio: beba, sorri, engula, compra; mate, vive, ouça, corre, morra, emburreça, consome; vista, goza, mude, grita, alucine, finge, enriqueça, suborna, adquira. E você, eu, nós todos enfim, à luz da consciência nem sempre, obedecemos. Com o nosso caríssimo livre-arbítrio, é lógico... Afinal, a minha e sua vontades não podem ser massas de modelar nos gabinetes ocultos dos coronéis do Mundo. Oquei, bróder? Antes fosse. Mas me irrita profundamente transitar olhos pelos horizontes e então a tristeza de distinguir-nos carneirinhos a saborear seu bocado no pasto geral, marionetes, criaturas de nariz muito em pé supondo resolver-se por isso ou aquilo sem quaisquer algemas. Coitados nós, tão iludidos... À minha garganta quase sempre se eleva um grito estéril (sim, quem ouvirá?), protesto, por causa de nossas atitudes planejadas em relação ao próximo cada vez mais distante e nosso sorriso-silicone e nossa excessivamente elástica consistência moral.

Tanto lheguelhé apenas para dizer eu te amo, Marisa. Amo? Sei lá... É uma sensação no mínimo mais ou menos estranha. Que até anteontem ignorava e considerar-me-ia mesmo incapaz de sentir sinceramente, alguém tentasse persuadir-me logo a mim (sujeito cujo ceticismo está impregnado no DNA, é opção de vida) quanto à existência desta ternura, amor numa tonalidade incomum: fascínio por missivista proprietária de palavras sem pretensões, escritas com alguma nódoa de mágoa longínqua e até muita alegria por viver (característica que nos caminhos esburacados do tempo caiu de minha carroça, perdeu-se de mim). Surpreso, confesso. Entretanto, entregar-me a artimanhas do coração é idéia que rejeito. Medo? E se, fruto desse carinho acelerado, surgir a taquicardia? Ora, sejamos lógicos: se ignoro-lhe a voz, o rosto, o sorriso que suponho encantador... platonismo, é certo. Menos ainda, provável: mera fantasia, estupidez duma criança em mim que insiste brincar comigo vez por outra.

Mas o caso é que, repousando meio a um Veríssimo, o pai, você redigida na forma de opinião manuscrita. Linda, lindíssima, sua alma. Porque, acredite, duas as principais fragrâncias exaladas pelos que possuem amadurecimento ao enxergarem-se pessoas do mundo e não indivíduos mínimos e restritos ao universozinho medíocre da vidinha medíocre. E, espanto, exultante, leio ambos os perfumes na carta: primeiro, a solidez demonstrada ao argumentar tão independentemente quanto possível das malditas sanguessugas para as quais elegemos a alcunha (nós e os eufemismos...) "convenções sociais"; segundo, a assumida e corajosa disposição para duvidar, inclusive das máximas mais bem plantadas nas raízes do nosso caprichoso estilo ocidental de convivência. Mais feliz na vida que menino paupérrimo quando ganha o trenzinho elétrico há tempos ambicionado, sinto em suas frases e parágrafos algo que, por minha única comparsa de sozinhez filosófica, conheço bem: incômodo. E, Marisa, é precisamente desse incômodo em existir apenas porque parafuso duma engrenagem gigantesca que sinto falta entre tantas inteligências cujas juventudes são pretensas. Ou melhor, apenas cronológicas.

Permita-me reforçar: suspeite sim, das verdades ditas inquestionáveis. Sempre. Desconfie muito e sem quaisquer receios. Costumam ser mentirosas elas, as verdades. Ainda que sua tranqüilidade seja mordida por um aborrecimento ao enxergar-se perante si mesma, ainda que o reflexo do espelho interior amargure. Viva o inoportuno! Nos dois sentidos da frase. Aí está, acredito, a maneira melhor de, muito a contragosto das figurinhas pretensamente indestronáveis que comandam a formidável e complexa máquina, resgatar o velho sentido do vocábulo "juventude".

Perdoe o discurso inútil, apenas sinuosidades para atingir o essencial. Mas é isso. Não, ainda é pouco... Talvez, coragem surgir, mande ramalhete bordado com palavras agradáveis e sem nenhum resquício dessa filosofia pessimista. Teimosa em ser minha sombra na vida. Se Deus quiser, querida jovem.

 

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