LILITH
Kátia Rodrigues
 
 

Rendo-me. Entrego os pontos. Desisto de guardar segredos, manter os mistérios de outrora. Chega desse tempo que se desfaz e não chega; não termina e tal qual um 'ata nem desata' me faz permanecer a ermo. Cansei da espera. Desfiz meus votos, abri janelas, derrubei muros e frente à porta segui adiante. Mas não vi nada que os olhos quisessem guardar, e senti o vazio da busca sem resposta, do encanto que se sabe cairá por terra.

Então enquanto rasgo cartas, fotos, palavras, exorcizo em mim os medos, as buscas do outro, esse outro que não me atinge mais e nem existe. Rompo a espera, interrompo a procura e simplesmente me entrego. Cacos juntos das sobras que o tempo trouxe, pedaços prontos para ver a vida, ou seria melhor dizer revê-la? Sim rever o cheiro da esperança o gosto doce do próximo beijo, o palpitar do abraço seguinte, não mais vazio - apenas forma, mas abraço único, grande invencível que dilacera a carne.

O sangue corre ligeiro, ganhando do ponteiro do relógio que não precisa mais mostrar as horas. Os tempos são outros, diferentes dos dias que se foram. Dias de amor e dor, de medo. Hoje serão dias novos, completamente desconhecidos onde, indiferente estarei à espera do próximo passo, da música seguinte, ensaiando uma dança surda. Na canção que toca não existem mais olhos, apenas sorrisos límpidos de olhar profundo, sem verso, em qualquer idioma.

Confesso meus pecados, erros, acertos, medos e, nessa entrega me livro de culpas, saio rumo ao amor, não mais pelo mundo, mas aonde se esconde a infinita capacidade de recomeçar, em cada minuto que passa, inesgotável certeza que a vida pode ser múltipla. Apago a luz, fecho os olhos em busca de algo que torne o sonho viável. No imenso escuro que me inunda traço um estreito veio de luz, e mesmo sem certezas, deixo a plenitude da vida dar-me forma, numa entrega total, capaz de desfazer enganos. Do medo vencido, brinco com as incertezas, que me contam que as trevas ficaram para trás.

 
 

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