A JAPONESA
Leila Silva
 
 

Comprei, em um museu de Washington D.C, uma gravura representando uma japonesa de cabeleira negra, rosto redondo, sobrancelhas finas, a boca, um pontinho vermelho e delicado, o nariz é um traço quase invisível, da mesma cor do fundo e apenas mais escuro que o rosto, a mão também pequena, de dedos finíssimos, os três do meio dobrados, levantando uma parte da roupa, o ‘mindinho’ livre. A outra mão está completamente escondida na manga do kimono. Esta japonesa vem me acompanhando há algum tempo e, por força de tanta viagem e maltrato terminou por ficar meio amassada. De vez em quando eu desenrolava o cartucho e a contemplava, mas só agora tive tempo e vontade para mandar emoldurá-la. ‘Uma moldura simples e não muito cara.’ Pedi pensando que não valeria a pena investir já que a gravura apresentava imperfeições.

Uma vez emoldurada percebi que os amassados se tornaram quase imperceptíveis, mas não me arrependi de ter optado por aquele acabamento simples, caía bem, a moldura não roubava a atenção. Pude apreciar melhor a minha japonesa, congelada naquele movimento lento, meio de lado, a boquinha suave de um pontinho só... Ela me fez pensar em outra japonesa, aquela pintada por Van Gogh, de um certo modo parecida com esta só que virada para a esquerda e muito mais colorida, os cabelos num arranjo exagerado e os olhos parecem sorrir de um jeito meio cínico, como se estivesse a zombar da gente ou como se tivesse feito uma travessura. Em tudo isso, muito diferente desta que tenho aqui.

Pendurei a gravura no meu quarto, à noite estava a contemplar esta delicadeza, aqueles olhinhos que não sabemos para onde olham, os pezinhos que não se deixam nem adivinhar, os tecidos finos cobrem tudo, que trabalhe a imaginação! Levanto-me da cama e me aproximo da gravura para ler as referências. Descubro, com espanto, que a minha linda japonesa é, na verdade, um homem:

‘Actor portraying a woman, Japanese painting, Edo (Kambun Period 166173)Ukiyoe School.

Volto para a cama meio magoada com a minha japonesa por ter se dissimulado durante tdo esse tempo, depois percebo, claro, que eu é que não quis ver a realidade que estava estampada ali...Enfim, sem razão, mas ainda assim meio contrariada, durmo.

Pela manhã o primeiro gesto, erguer a mão e alcançar aquilo que parece uma parte de mim, os óculos, com eles no rosto contemplo, uma vez mais a delicada e dissimulada japonesa. Sonolenta reflito, ou melhor, repito, ‘Há mais mistérios entre o céu e a terra....’ e decido que isso é bom, ‘Fiat lux’. Abro a janela. E que me importa o sexo escondido debaixo daquele kimono?

 
 

email do autor