CONFESSO QUE BEBI
Raymundo Silveira
 
 

Hoje, mais uma vez, tive um bate-boca comigo mesmo. "E aí, vai me / nos enrolar mesmo, ou farás a tal autocrítica que prometeste?". "Peraí cara, sabes muito bem que os meus pecados são enormes. Preciso criar coragem. Ainda mais assim, como queres: uma confissão pública". Então, trepliquei pra mim mesmo: "De hoje não passa. Ou contas teus podres, ou não escreves mais!" "Tá bom, tá bom. Não precisa ameaçar. Por onde achas que devo começar?" "Sei lá, pela primeira coisa que te vier à cabeça".

Quem começou a ler isto, e ainda não me conhece, pensa que é brincadeira. Juro que é a pura verdade. Pode me achar louco quem quiser, mas costumo conversar comigo mesmo todos os dias. E não é uma conversa silenciosa, não: é como se eu fosse duas pessoas em pleno diálogo. Em alto e bom som. Como já contei uma vez aqui, quando estou sozinho, dirigindo o automóvel, as pessoas param pra olhar. Ontem uma senhora foi de encontro a um poste, porque passei e ela ficou olhando pra trás como se não quisesse acreditar. Vi tudo pelo espelho retrovisor.

Bem, vou cumprir agora a promessa que fiz, começando por confessar as bebedeiras. Minha devoção a Baco começou nos idos de 1958, quando tinha apenas catorze anos. O primeiro porre ninguém esquece. A bebida foi cachaça com coca-cola e não houve nada demais que mereça ser dito. Só estou me referindo a isso porque foi a primeira vez que pus álcool na boca. E não só na boca, daí ele desceu para o estômago, entrou para o sangue e subiu pra a cabeça, claro. Agora, farra grande mesmo aconteceu dias depois. Parece mentira. Eu e um companheiro de copo ingerimos nada menos do que duas garrafas de Vodka. Não conseguimos chegar em casa pelos nossos próprios pés. Foi o "seu" Anselmo - um gari da minha aldeia - quem nos conduziu num carrinho de mão. Daqueles de carregar lixo. Um escândalo. Acho que ainda hoje comentam por lá.

Doutra feita, digo, doutra farra, fomos parar no cemitério. Nas rodas que se formavam todas as noites, quando estávamos sóbrios, diziam que ninguém teria coragem de ir à cidade dos mortos, àquela hora, e trazer uma cruz. De fato, quando sóbrios, nunca teríamos mesmo. À meia noite daquele dia, porém, eu e outro "sócio dessa estranha confraria" fomos lá. E trouxemos a tal cruz. Como quem vai a um baile. Na manhã seguinte, quando acordei e lembrei do que tinha feito, fiquei com medo até de mim mesmo. E passei muito tempo apavorado, porque todo mundo dizia que a dona da cruz viria reclamá-la. Até hoje não veio. Talvez porque eu tenha pagado ao "Caceteiro" - ex-goleiro da seleção da minha aldeia - para ir devolver a cruz da morta.

Se fosse contar todas as farras, ou pelo menos as homéricas, teria de escrever uma obra mais vasta do que a "Comedie Humaine". "Mas tens de contar também aquelas duas...". Estou dizendo para mim agora. Como sou eu mesmo que estou me dizendo já sei quais são. Ambas foram na Europa. A primeira, em Paris. Comecei a me preparar para ir ao Lidô às seis da tarde. O show só seria às dez da noite. Por "me preparar" entenda-se: entornar meia garrafa de uísque. Quando cheguei lá, a bebida era champanhe nacional. Nacional lá da França, claro. E estava incluída na consumação. Ora, se eu era babaca pra deixar de beber champanhe nacional (francesa), que já estava paga, pra tomar bebida não paga! Enchi a cara. Que já estava pela metade de uísque estrangeiro (escocês). Bem, quem não estava paga - e eu tive de subornar na manhã seguinte - era a chambermaid do hotel. Para que lavasse o carpete ensopado de vômito e ficasse de boca trancada. Do contrário ia ser o maior imbróglio diplomático. Não estou exagerando. Um amigo me falou que eu teria, talvez, de recorrer à embaixada brasileira para que tudo ficasse na santa paz de Deus.

A outra foi no interior da Noruégua, digo melhor, Noruega. Ah lugarzinho difícil de se beber! Certa noite em Laerdal, um povoado bucólico à margem de um fiorde, eu estava a ponto de beber nas calças. E de entrar em crise aguda de abstinência. Havia apenas um supermercado aberto. E foi pra lá que me dirigi com o mesmo ímpeto de quem se encontra em plena travessia do Saara, em vias de enlouquecer de sede, e avista um oásis. Percorri todas as gôndolas. Cada garrafa que pegava parecia conter o líquido de que tanto necessitava.

Mas era tudo miragem. Nada de cerveja, vinho, nem muito menos conhaque ou uísque. Implorei aos céus para encontrar pelo menos algo assemelhado ao nosso "Biotônico Fontoura". Nada. De repente dei de cara com algo escuro, viscoso, rotulado em norueguês. Contudo, o meu sexto sentido de bebedor inveterado me gritava que ali estava contido o precioso líquido. Peguei uma garrafa e acalentei ao colo como se fosse bebê. Como se fosse beber, não, porque ia mesmo bebê-la: como se fosse um nenê! Passei pelo caixa apavorado, tremendo de medo que viessem me revistar. E paguei sem esperar o troco. Corri para o quarto do hotel e atravanquei-o por dentro. À falta de um saca-rolha, quebrei o gargalo na pia do banheiro e despejei o conteúdo goela adentro. Só desceu um gole. Tratava-se de um detergente!

Engraçado! Agora foi que me dei conta disto. No tempo em que eu bebia, jamais conversei sozinho. Será que isto acontece agora como um efeito da falta de bebida?

 
 

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