GEOVANA É FELIZ
Gustavo Villas Boas
 
 

O tom azulado no negro do céu anunciava o fim da madrugada. Gatos-pingados paravam com cara de sono e enfado nos pontos de ônibus, indo buscar o pão de cada dia. Outros, os felinos, caminhavam sensualmente e alimentados depois de mais uma noite de caçada. Geovana observou os pequenos animais noturnos e se sentiu como eles. Era senhora das madrugadas, a cumprir busca solitárias nos becos da cidade que dorme.

Também diziam que tinha olhos-de-gato siamesa. Amendoados, azuis, ágeis, quase desesperados. "Minha mãe sempre me compara com uma gata: diz que sou interesseira, só volto para casa para comer. Mas sou gata de rua, evito qualquer aproximação humana. A não ser àqueles que me alimentaam: cocaína.". Era o blog de Geovana.

Aquela noite tinha sido desesperadora. Nos becos e bares, no subterrâneo e no lixo, em nenhum lugar encontrou o pó branco que era a chave de sua felicidade passageira, a acabar com a angústia e a dor-de-barriga que a consumia, todos os momentos, a não ser aqueles em que tinha ao alcance de seu canudo algumas fileiras de cocaína. "O manjar dos deuses urbanos: o sabor industrial, amargo como os remédios da sociedade. Auto-confiança em pó. Minha mãe prefere em calorias ou pílulas. Um pequeno resumo das relações capitalitas: os pobres produzem e morrem para os ricos aproveitarem. Uma vantagem: a distribuição de renda é direta, da mão branca para a mão preta. Sem burocracia como intermediária".

A menina não se conformava. A meia-luz azulada que iluminava seu braço alvo era o tom da situação. Não sabia se era dia ou ainda noite. Não sabia se desistia, e passava o dia entocada no quarto no meio de suas palavras, cigarros e maconha, deprimida, suando e com diarréia ou se continuava a busca até o sol brilhar e tocá-la de volta para casa. Geovana decidiu por não arriscar a deparar-se com a luz. O crepúsculo era o limite. "Odeio o dia. Sol, só no campo. Na cidade, noite: só comércios interessantes, não tem trânsito, não tem chatos. Gatos, não cachorros."

Dava passadas largas em direção à sua casa, mas o caminho não era o menor. Alongou, para última tentativa em um bar, que, se aberto, abriria novas perspectivas para a busca. O "Bar da Rosa Flor" tinha uma porta cerrada e a outra a meia-altura. Geovana viu a metade de muitas pessoas dentro e entrou, em um movimento rápido e decisivo, para não deixar dúvidas à dona do estabelecimento. Rosa era uma mulher grosseira e com porte masculino. Tratava mal aos fregueses e fingia não admitir tráfico dentro de seu bar. Mas, tinha consciência de que a maior parte de seus vencimentos vinham da alta circulação de dinheiro que os vendedores de drogas propiciavam. Cada um que entrava atrás de qualquer ílicito largava algumas notas em cerveja, cigarro, isqueiro. Era uma lei não escrita. Usuários e fornecedores também tinham o cuidado de serem discretos, dando um pequeno passo em direção ao lado de fora, no momento de consumar o negócio.

Geovana sentou-se e pediu uma cerveja. O primeiro copo bebeu de um gole. Olhou ao redor e não viu nenhum conhecido. Em um canto alguns homens zombavam e apalpavam uma travesti albina, que devolvia xingamentos e pequenos favores sexuais. Geovana percebeu que alguns se encabularam com sua presença de menina rica e se afastaram do objeto de prazer. A travesti sorriu para ela e se aproximou. Parecia ter cerca de 25 anos, os cabelos eram enrolados, cor de palha, até a altura dos ombros e mal-cuidados. Usava um shorts jeans curtíssimo e apertado, que destacava uma bunda rija e um volume assustador entre as pernas. Não tinha seios, e Geovana achou engraçado o top colado que a travesti usava, a barriga rosa à mostra. "Me chamo Branca", disse. Bem a propósito, pensou Geovana, tentando não rir.

Branca pegou um copo da cerveja de Geovana sem pedir. "O que quer aqui, menina?". Geovana não moveu a boca. Abriu a palma da mão, juntou os dedos e bateu três vezes no balcão, como se tentasse dividí-lo ao meio. A travesti sorriu. "É comigo mesmo, por que você acha que eu me chamo Branca?"

Logo as duas conversavam fora do bar. A dor-de-barriga em Geovana era insuportável, seu intestino se mexia e ela soltava peidos fedidos, que faziam Branca gargalhar, o quê tornava mais grostesca sua imagem. Muitos pássaros já cantavam, mais pessoas circulavam pelas ruas e a luz azul flertava com o amarelo. Geovana deu todo seu dinheiro para Branca, que notou o desespero da moça e retribuiu com apenas metade do pó que aquelas notas poderiam comprar. Sabia que tudo que pessoas naquele estado não queriam era discutir. "Por que não cheirar? Tenho dinheiro e me sinto feliz: por que não cheirar?"

O intestino de Geovana deu um ultimato. A garota voou para dentro do bar e se trancou no banheiro fétido. Arriou as calças ao mesmo tempo que um jato de bosta explodia. Não se importou com os respingos na perna e na calça. Enquanto se aliviava, tirou a identidade da carteira e despejou todo o pó na sua superfície. Como já não tinha dinheiro, enrolou uma nota-fiscal e a usou como canudo. Aspirou com avidez a cocaína. Lambeu várias vezes sua foto, a assinatura, nome do pai e da mãe. Desperdício era burrice.

Sentiu-se tão bem que nem se importou com a falta de papel pra limpar-se. Saiu do banheiro como uma rainha, nada podia incomodar. Quando pisou fora do bar, o sol já se mostrava no céu, e aqueceu Geovana, que considerou carinhoso o calor do alvorecer, ideal para a caminhada que faria até sua casa. "Inexoravelmente, para o meu desespero, a cidade renasce: muitos ônibus, pessoas apressadas, os jornais na banca com a novela do cotidiano."

Era dia, e Geovana se sentia a pessoa mais feliz do mundo.

 
 

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