TARDE VERMELHA
Isaias Edson Sidney
 
 

Era uma tarde branca de doer... ao sol, o cartaz do filme era tentador: as pernas longas da mocinha envolvendo o galã, numa pose sensual, num beijo de tirar o fôlego, enquanto na avenida movimentada, as pessoas passavam em louca correria em busca de não se sabe que esperança ou desesperança, e ele ali, estático a contemplar o cartaz do cinema do centro, um pardieiro velho, ele sabia, mas o cartaz seduzia, a boca carnuda da mocinha a ... a .. engolir a boca do galã... e as pernas!... nunca vira tão belas, tão torneadas e tão brancas, a aparecer desde a coxa pelo rasgo do longo vestido vermelho... vestido vermelho apertado na cintura e modelando o busto até acabar ou começar o sonho num decote fantástico que deixava entrever os seios alvos... não tinha palavras para... seios... era vidrado em seios... em seios e pernas... era vidrado em quadris e aqueles quadris, ah, eram a anteporta do paraíso, era vidrado em mãos... mãos de neve, longas e firmes a prometer carícias... era vidrado em olhos claros e os olhos fechados da mocinha do cartaz prometiam o que nenhuma outra mulher poderia cumprir, deviam ser olhos claros, com certeza... era vidrado em... mulher... mulher! e aquela era a mulher de seus sonhos... longa, translúcida, luminosa... o dia por cumprir era só rotina, o dia pra vadiar, lembrou uma canção praieira de Dorival Caymmi, não podia vadiar, não podia, mas os olhos fechados da mocinha eram irresistivelmente tentadores no clarão que prometiam revelar quando abertos e ele ali extático, sem pensar em mais nada, já o bilhete na mão, depois a roleta, os olhos apertados com o choque por causa do contraste entre o dia lá fora a brilhar e a escuridão do cinema, a cadeira de couro velho, o cheiro de coisa antiga, os poucos, muito poucos espectadores, no cinema da década de trinta, com histórias de festas e premières fantásticas grudadas em cada partícula de pó que ali se mantinha em suspensão, a tela enorme, branca, côncava, de cinemascope, a tela que devia transportá-lo para o sonho de sol e areias brancas, e ele ali ainda pensando que podia se arrepender de matar um dia de serviço, mas afinal, o que é um dia de serviço para quem não faltara um só dia nesses últimos dois ou três anos, exagerou, uma dor de cabeça terrível, ou uma indisposição estomacal e o chefe deveria engolir a mentirinha, talvez nem descontasse a falta do funcionário tão exemplar, exagerou de novo, cheio de si, da coragem que tivera de matar um dia de trabalho para ir ao cinema, mas a mocinha... e o cartaz e as longas pernas alvas e os alvos seios e os braços luminosos e os lábios de sangue e... tudo o mais que o cartaz prometia, indelevelmente já desenhado na memória... a perspectiva de contemplar os olhos claros - sim, deviam ser claros - daquela mulher... esqueceu trabalho, esqueceu o dia borbulhante de calor e de apressadinhos lá fora e mergulhou em si mesmo na expectativa da sessão que não demoraria a começar, a campainha já soara pela segunda vez, alertando a meia dúzia de espectadores, ele afundou o corpo na poltrona e estirou as pernas e fechou por alguns instantes os olhos, pensando nos olhos de luz da mocinha, nas pernas brancas, naquelas coxas de mármore ou seriam marfim? ah! era o sonho de luz do seu desejo... e o terceiro sinal apagou as poucas luzes do velho cinema e a projeção na tela apresentou um jornal antigo ao qual ele não deu nenhuma atenção, mergulhado nos seus próprios sonhos e esperanças, e depois de uma longa série de trailers de filmes que entrariam em cartaz ou estavam em cartaz em algum outro cinema perto de você, finalmente a grande tela iluminou-se com o certificado de censura, de exibição obrigatória, classificando o filme: proibido para menores de dezoito anos - naquele tempo tudo era proibido para menores de dezoito anos, a ditadura militar controlava cada peça, cada filme, cada música, cada palavra que se tornasse pública, foda-se a censura, pensou e logo se arrependeu num cantinho de seu cérebro, não queria pensar em nada, apenas sonhar e viajar por aquelas pernas e coxas de mármore branco (sim, eram mármore legítimo, de carrara!) e por aquele busto de neve, nada mais, o filme já vai começar, o filme já vai começar.... e então ele sentiu com arrepio uma mão em sua coxa... uma mão que displicentemente vinha da poltrona da frente e se insinuara como uma cobra por entre o vão das cadeiras e vinha subindo, uma lesma, um bicho, um cipó úmido, pelas suas pernas em busca de seu sexo, e ele mal teve tempo de perceber que se encontrava no meio de uma sala quase vazia de um cinema do centro em uma tarde de meio de semana, bem no meio da semana, matando o serviço, e uma mão furtiva buscava tocá-lo em sua masculinidade, e, ainda por cima, bem no começo do filme que tinha como protagonista uma das mulheres mais luminosas e belas que ele já vira em sua vida, bem quando ele estava no começo do bem-bom do seu sonho que iria ganhar vida na tela cinemascope de um cinema antigo, muito antigo, é verdade, mas de aparência tão vetusta, tão respeitável, e então ele tomou consciência de que havia alguém sentado na poltrona da frente, dono daquela mão coleante e úmida que subia e tentava agarrá-lo e ele olhou bem no branco dos olhos do homem, que se voltara para trás, para ele, o homem, o homem que ria um sorriso de sacana debaixo de um bigode branco, e o bigode branco foi a última coisa de que ele ainda se lembra daquela tarde vermelha...

 
 

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