ÍNTIMO AO CHÃO
Adlai Hoartmann
 

Joana limpa o chão. Parece fácil, ela pensa, só parece. Deve ser por isso que ela anda sempre olhando pro chão. Não que ela se importe com a sujeira, mas as outras pessoas importam sim. Boa parte do tempo ela fica alí recostada na parede lembrando que se pudesse estaria em casa dormindo ou então fica assim apoiada a testa no esfregão, dormindo. Então alguém faz alguma sujeira e chamam ela pra limpar. Sujeira mesmo: Merda, vômito ou sangue. Poucas vezes, bem poucas ela sai do seu torpor para limpar apenas poeira, chão de hospital brilha muito, muito por causa dela, Joana conversa pouco para deixar o chão imaculado. Ninguém a percebe, só quando algo continua sujo. O paciente, o médico, a enfermeira, a pessoa que cuida do doente também, conseguem perceber muito bem, bem mesmo, quando algo está sujo, bastam poucas palavras, limpa aí, ou limpa aqui, porque Joana sabe muito bem o que fazer. Joana considera seu trabalho santo, mas queria mesmo era um colchão de mola para dormir depois do almoço. Outro dia, ela viu uma senhora sair do quarto chorando muito, logo depois veio uma enfermeira, depois veio um médico, todos sairam de lá com uma cara de quem viu, não gostou e não quer ver de novo. Joana ficou curiosa. Foi até lá também, foi saber se havia merda, sangue ou vômito no chão. E o chão estava tão limpo que pode se ver no reflexo brilhoso do piso. Experimentou sorrir e pode se ver sorrindo. Coisa bonita é gente sorrindo. Voltou para o seu canto, encostou a cabeça na parede e cochilou, nem pode ver que lá dentro alguém morreu, sufocado com a própria secreção pulmonar, numa espécie de suicídio involuntário, sob o seu chão limpíssimo, sem ter tido a chance de se ver pela última vez sorrindo.

 
 

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