VILÃO
Cristina Del Nero
 
 

Só quem tem cachorro sabe o quanto eles falam com os olhos. Parece que é no olhar que eles guardam todos os segredos do mundo, com a sabedoria de quem está na terra há mais tempo do que os homens. E mesmo que eles façam coisas irracionais, como correr atrás do rabo ou ficar horas roendo uma bolinha velha, basta olhar para um cachorro para ter certeza de que ele sabe mais do que deixa transparecer. Quem conheceu o Vilão tem certeza que sim.

Vilão era um vira-lata pretinho e atarracado, que se fosse homem, seria do tipo baixinho e invocado, que não leva desaforo para casa.

Ninguém sabe de onde veio, nem quantos anos tinha. Um dia chegou e resolveu viver num estacionamento, onde tomou posse de uma casinha, com direito a água e comida, que pedia aqui e ali. Até que bem no lugar da sua casinha, resolveram construir um prédio. Despejado, Vilão atravessou a rua e entrou na farmácia. Como era conhecido de todos, logo se esparramou pelo chão. E lá ficou. Era o primeiro a chegar e o último a sair. Zelava pelo lugar, latindo para alguns clientes e perseguindo pneus de carros. Nas horas vagas, dava suas voltinhas e vez ou outra voltava para a farmácia todo esfolado (até parece que sabia), onde o Sr. Edson, o farmacêutico, fazia seus curativos. Um dia, na hora de fechar a farmácia, o Sr. Edson não suportou o olhar carente do Vilão. Fez um teste: "Vilãozinho, vamos para casa"?

E lá foi o Vilão, seguindo seu novo dono. Ao entrar no prédio, não quis subir pelas escadas. Empacou. Tiveram que subir pelo elevador. Vai ver estava se acostumando à boa vida. Dentro do apartamento se portou como um cachorro de madame. Comeu, bebeu água e se deitou quietinho na sua cama quente e macia.

Mesmo assim, Vilão fazia questão de manter seu status de vira-lata: não usava coleira nem por decreto e fazia questão de latir para todos os lixeiros que via.

De manhã cedo seguia seu dono até a farmácia, e a primeira coisa que fazia era checar se os seus tesouros ainda estavam debaixo do balcão. Era lá que ele guardava os ossos e biscoitos que ganhava dos fãs. Nos dias de feira, sempre voltava com uma banana na boca. O mais sensacional é que ele comia metade da banana e guardava a outra metade para mais tarde, com a experiência de quem já passou fome. Entre uma refeição e outra, cobrava pedágio na esquina da padaria, cercando os clientes até conseguir um pão de queijo. O Vilão era um vira-lata que tinha estilo. Numa tarde saiu e não voltou na hora de costume. O farmacêutico esperou, mas como já era tarde da noite, fechou a farmácia e foi pra casa, com o coração apertado. 15 minutos depois, o porteiro interfona:

- Seu Edson, o Vilão tá subindo.

- Como?

- Ele chegou e foi direto para o elevador. Apertei o botão do andar. Vai abrir a porta que ele deve estar chegando.

Nunca mais vi o Vilão. Nós dois nos mudamos de bairro. Se já morreu, pelo menos uma certeza me consola: com aquele olhar ele deve ter entrado no céu.

 
 

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