CEGO DOS ÓIO
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães
 
 

"sabe quem eu sou ?", perguntou meu pai.

o cego inclinou levemente a cabeça branca para a esquerda, descansou a sanfona de oito baixos num tamborete, enxugou o suor do rosto de feições fortes com um lenço de flanela, e pediu a meu pai que se aproximasse mais. então, com suas mãos grandes de dedos mágicos apalpou-lhe os sulcos da face, percorreu toda a extensão da fronte larga passeou pelo nariz , se estendeu pelo queixo, seguiu a barba rala até as orelhas e sentiu o volume do crânio como se modelasse um pote em argila.

"é Chico Pinto, não é?"

era. acertou de primeira.

"conheci pela cabeça, num sabe? pelo formato. é. cabeça de cearense é diferente. eliminei oito estados duma vez. depois tem essa cicatriz no pé do ouvido. foi coice de jegue, não foi? foi estripulia de menino, não foi?"

ambos riram muito e eu sorri sem entender nada.

o cego, que se chamava Dantas, meu pai me contou, era uma lenda viva do nordeste.

prosearam: Dantas falou das suas andanças tocando nas feiras do sertão e meu pai contou como fomos parar naquele fim de mundo.

Dantas disse: " olha, Chico, eu não dou de me queixar não, mas estou ficando velho e é de velho reclamar. antes, era só ouvir a voz para eu identificar o cabra. agora, tenho que assuntar bem, seguir o tato, passar a mão, descobrir sinais, que nem quem compra um cavalo. fosse mulher, meu amigo, eu não me avechava. fazia até questão."

riram de novo, com gosto.

satisfeito pelo reencontro, meu pai deixou uma nota de dez na bandeja do cego que o agradeceu, e despediram-se com um abraço.

lembro ainda que aquele dia, de qualquer ponto da feira em que estivéssemos, podíamos ouvir o solo triste do "assum preto cego dos óio" que o sanfoneiro cego extraia do fole. meu pai, que o conhecia desde bem antes de eu nascer, disse-me que assim como o pássaro da música, o seu Dantas, cego dos olhos, tocava cada vez melhor.

 
 

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