OCHI CHERNIE, OCHI STRASTNIE
May Parreira e Ferreira
 

Um dia, na falta dos teus olhos.

Não quero falar nem escrever nem pensar. Eu quero é ficar quieta. Por favor, não pergunte nada, não diga nada, não pense nada. Se possível nem se mexa. Não quero nenhum movimento que possa desviar minha mente do nada. Quero ficar sozinha. Quero doer sozinha. Quero morrer sozinha. Não sei porquê estou aqui, não sei porque existem os porquês quando não temos respostas e nunca as teremos. Somos inúteis obras de um deus vingativo. Nada que faça pode mudar esta irrelevância do ser temporal. Minhas sementes já caíram de mim e estão no mundo prontas para serem fertilizadas. Presto para nada mais além do que ficar aqui preenchendo um vazio de moléculas cansadas e desistentes. Deixe-me recostada até meus pulmões desvalidos se entregarem. Digo adeus ao mundo que me deixou perplexa e curiosa. Talvez lá as respostas sejam todas. Cansei de fazer perguntas aos ecos. Cansei de contemplar Narciso em seu lago encantado. Simplesmente cansei. Fecho meus olhos e encontro o silêncio negro áspero.

Num outro dia, com a presença de teus olhos.

Da minha janela vi no horizonte um arco-íris no avesso. O céu se abriu em pequenas mãos côncavas a esperar meu pranto, e este não veio. Em seu lugar, um sentimento profundo a canorizar a chegada da primeira semente fertilizada. Minha neta. Que descobre o mundo, que nos descobre, que descobre a vida, e nem imagina a existência da via Láctea. Olhos negros, enormes jabuticabas silvestres, atentos, perspicazes. O desdobramento de genes, tornando-se gente, preenchendo-se de afeto.

Há muito não tenho pesadelos, meus demônios internos estão apaziguados. Meus sonhos hoje são povoados de imagens estéticas. Descobri no dicionário a palavra extesia, e em mim o significado dela. Descobri o horizonte. O mundo é todo este horizonte, cheio de relevos. Toda a gente é cheia de relevos. Descubro meus relevos enquanto observo o horizonte. "Ochi chernia" cantava meu pai. Olhos negros que me mostram o norte. Fecho meus olhos e encontro o macio silêncio do amanhã.

 
 

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