PÁSSARO - PARA CORTÁZAR
Vera do Val
 
 

Charlie Parker rasga o ar em um lamento pungente. O trompete e a fumaça do charuto. Uma tv ligada, uma luta de boxe. O gigante, magro e barbudo, sentado ao fundo do bar, parece imerso em si mesmo. Balança a cabeça ritmado, seu cabelo rebelde cai pela testa. A um canto uma mulher risca desenhos no chão. Quadrados e números. Um, dois, três quatro, cinco.... Cada quadrado um número, cada número no seu quadrado. Intercambiáveis. Em cada quadrado a realidade é ambígua, a dúvida surge, as escolhas são múltiplas. Silente ela aproxima-se do gigante, palavras são desnecessárias. Toca-lhe o ombro. Cúmplice, ele lhe oferece a pedra do jogo.

A mulher atira a malha ...

Casa 5. Ela respira fundo e mergulha em um mundo paralelo. O gigante dirige em alta velocidade. A estrada é erma e ele vai solidário. Uma Ode a Che. Os sinos dobram em Cuba. Ao longe espocam tiros nas montanhas da Nicarágua. Sandino. A América Latina sangra.

Soy loco por ti, América...

Caminhando pelas bordas da estrada bandos imensos de jovens que trazem flores nos cabelos. As da mulher são vermelhas.

"Dentro da gente há um outro que perseguimos durante toda a vida. Penso que é importante a busca permanente de tudo que está do outro lado do visível e do que chamamos realidade."

Casa 3: O rapaz vomita, de tempos em tempos, coelhinhos brancos. Os coelhinhos tem olhos róseos e pestanas claras. Espalham-se pelas calçadas de Buenos Aires. Multiplicam-se, e multiplicam-se e multiplicam-se. Em pouco tempo a cidade torna-se rosada. Todos os homens são rosados e de olhos brancos. Como se hipnotizados, convergem para o mesmo lugar.

A mulher fecha os olhos. Nada é seguro. Salta uma casa. Atira a malha.

Casa 2 : Crianças. Enxame delas. Sentada no gramado, entre os guris, a mulher escuta e abana a cabeça. Engole seco e consente. Aceita. Nada é racional, tudo é pele, vestimenta. Uma saia sob uma saia e outra saia sob uma saia. E assim seguem sucessivas. Chapéus e chapéus encobrem a vista. Intermeiam, iludem.

O garçom aproxima-se do gigante, e, sem dizer, coloca o copo de tequila sobre a mesa. A mulher suspira um ai. Outro lance

Casa 1 : A vida deve ser decifrada na contramão do óbvio. Nada é assim se lhe parece. O andar na rua pressupõe muitos planos: tempo, linearidade, espaço, tornam-se fugidios, e ao cotidiano falta o chão quando o acaso espreita. O mistério está nas muitas maneiras de se chegar a Roma, mesmo que para isso se passe pelo Polo Sul. A mulher percebe que as escolhas são suas. Ela deve decidir a historia

A malha corta o ar.

Casa 4 - O polígono de oito lados. O oito redondo e perfeito. Dois círculos. Infinito. Octaedros são pipas no céu, meninas a dormir e cavalos enlouquecidos nos jardins. Liliana chorando. O velho e a moça. A covardia diante do amor inesperado e fortuito faz a mulher recuar. Pequenas formas riem pelos cantos.

O bar continua na penumbra. Nocaute e o copo intacto. Charlie sopra um improviso. O gigante, que havia se levantado e ia em direção à porta, estaca de chofre. Volta-se e acena. Charlie sorri e o jazz embebeda a noite. A mulher recolhe as malhas. Fim do jogo. Os prêmios ficaram sobre a mesa. Ao lado um pergaminho para André Fava, um postal de Paris e o toco de um charuto. O pássaro retorna ao tema, o fim se contamina do começo.

No entanto

 
 

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