FOLHINHA DO CALENDÁRIO
Gustavo Villas Boas
 
 

O sangue escorria do joelho até a canela. Um fio grosso, de um vermelho tão vistoso que até fazia com que Sábado esquecesse a dor. Jorrava de um buraco que outrora fora um verruga. Maculava a meia branquinha, parte obrigatória do uniforme escolar.

Sábado corria para não perder a aula. Naquele dia fariam papais-noéis com massinha vermelha e um bocado de algodão branco. Um deslize e pum!, a rótula chocou-se com a calçada de pedras portuguesas, esfacelando a verruga surgida depois que ele apontou o dedo para uma estrela. Sábado ficou meio encucado com a maldição. Haviam dito que a verruga romperia no indicador, o dedo que acusara a estrela. Balela. Logo depois, foi sim em seu joelho, tão magoado dos tombos infantis, que ergueu-se uma pequena e incômoda bola de carne, que o médico atribuiu à baixa resistência.

Sábado não concordou. O Doutor não sabia de tudo. Primeiro, ele tinha a consciência de que sempre fora um resistente. Ignorava calado, buscando forças, as brincadeiras de todas as crianças e alguns grandes com seu nome cumpridor de uma promessa feita pelo pai já morto. Além disso, Sábado apontara uma estrela. Verruga batata, a avó previu. A avó dizia sempre ter razão.

A avó ficaria muito brava com aquele sangue na meia. A mãe também. Eram mulheres bravas, o menino, impecável, como o pai. Ele que não viesse sujo, ou com a conversa do nome, ou querendo mais dinheiro para um sorvete, ou dormisse tarde. Cada coisa no seu lugar, se só quer o bem, como pode ser ruim? E as outras crianças jogavam bola durante a semana e Sábado só de sábado, por que domingo tinha que guardar para Deus, tão bondoso e ainda credor da promessa que o pai fez.

Quando Sábado estava para nascer, o pai adoeceu. Muito mal, iria morrer. Talvez não conhecesse o filho. Seus últimos dias corriam contra a demora do bebê. Não aceitava uma cesariana para adiantar o parto, mas queria conhecer o filho. Desesperado no leito, prometeu direto a Deus. Vivendo para ver o filho, o batizaria com o nome do dia em que ele nascesse, para nunca que nunca mais fosse esquecido a dádiva divina. De lambuja, Ele levaria um cordeiro disciplinado. Enquanto o filho não completasse 14 anos, a mãe incumbir-se-ia de não deixar que faltasse a uma missa que fosse. O pai tombou em um domingo, a tempo de conhecer, um dia, o rebento, mas não registrá-lo. A mãe, solidária com o futuro da criança, deu um jeito de driblar a promessa e cumpri-la, e nomeou-o Sábado em lugar de Vinteedois de Julho, como queria o pai. Considerou que esse era um Sábado e as missas pagaria a contento a promessa.

Sábado não se conformava com o resultado de ter conhecido seu pai. Além de não lembrar-se dele, odiava a missa aos domingos. Também considerava que sua mãe poderia ter tido mais astúcia ao registrá-lo. Por que não Júlio, assim como todos falamos o mês em que tinha nascido? O dia 22 está dentro de Julho, Deus compreenderia. Burrice da mãe, remoia.

A mãe confundia as coisas. O sangue vermelho que molhava sua meia, até mais bonita, seria apontada como um crime. Criança vagabunda é que anda suja, dá trabalho limpar. Sábado ficaria de castigo e perderia o único dia da semana que tinha para si, para seus joguinhos solitários na praça da rua. Só por que a meia estava tão bonita. O menino teve, então, uma idéia. Abriu a mochila e tirou o algodão da barba do papai-noel de dentro. Cuspiu na mão, molhou o montinho branco, e o esfregou. Primeiro na meia, depois na perna toda, até o joelho, onde deixou um pequeno pedaço, seu sangue a fazer a vez de cola.

Olhou o resultado, decepcionante. A meia ostentava uma manja enferrujada, que, mesmo mais clara, era muito mais feia que o vermelho vivo anterior. Encolheu-se. Sem papai-noel, sem o próximo sábado, voltaria para a casa, para tomar a bronca. Quatorze anos depois, durante a reflexão que fez antes de colocar uma bala na cabeça, lembrou desse dia como a passagem mais triste da sua vida.

 
 

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