DE SUPLÍCIOS E SEMIDEUSES
Tatiana Alves
 

No princípio, era apenas um homem. Sem ambições materiais, seu grande anseio era pelo conhecimento. Envaidecia-se ao construir um mundo todo seu, no qual as teorias filosóficas casavam-se com a Física em que se havia graduado, embora, a seu ver, em muito a superassem. Gostava de se sentir único em meio a seus pares, dominando linguagens aparentemente incompatíveis, sabendo o que os outros sabiam e, principalmente, o que desconheciam, tornando-se insuperável. Isolava-se, aumentando a aura de mistério em torno de si, alimentando a admiração alheia e sua própria vaidade. Um Narciso intelectual, que se mirava nos olhos do séquito que o acompanhava. De resto, ninguém se podia candidatar a parceira de alguém tão inatingível.

Então surgiu a primeira: simples, dócil e bondosa. Ideal para o papel de esposa e mãe. Casaram-se, uma vez que era esta a única atitude por ela inspirada. Vieram os filhos, coroando o par estabilidade/felicidade com que ele se convencia a pertencer ao mundo mesquinho e terreno, tão distante da abstração filosófica. Enterrava-se assim na caverna, não percebendo que o mundo lá fora o chamava. Como um ermitão, o isolamento ampliava-lhe o saber que, paradoxalmente, o excluía ainda mais. Refugiava-se em seu mundo interior, no qual os sábios de todos os tempos lhe vinham ofertar a dádiva do conhecimento. Um Ali-Babá que detivesse a chave da maior de todas as riquezas : o pensamento humano. Banqueteava com os mestres, sorvia o néctar dos deuses e, embriagado de ambrosia, fazia pequenas incursões ao plano dos míseros mortais.

A mulher não o amava: adorava-o, com a devoção destinada a um deus. Praticava a mais tirânica das dominações, a da bondade. Sempre tão generosa, compreensiva e abnegada, aguardava-o com a paciência de Penélope. Precisavam um do outro, numa sadomasoquista simbiose: ela, para ter ao lado o objeto de seu afeto, ainda que soubesse que nunca o teria por inteiro; ele, por ter alguém que jamais o abandonaria, alguém para cujo colo poderia regressar sempre que quisesse. Zeus, com suas aventuras, e Ulisses, com seus périplos, não encontrariam esposa mais devota. Estimulando seu narcisismo, mantinha-o cativo.

Falando em Ulisses, chegou a segunda: como a complacente Penélope já estava em cena, só se podia tratar de Circe, a feiticeira que irrompe, seduzindo e encantando. Enfeitiçou-o com um filtro de um sabor jamais provado antes, fazendo-o com ela embarcar na mais perigosa e ousada de suas aventuras.
Das outras vezes, sempre encontrara o caminho de volta, mas desta perdeu-se, literal e figurativamente. A moça, arisca e astuta, virou-lhe a cabeça, tirando-o da caverna e da reclusão. Parecia um amor cósmico, algo mágico e impossível de ser retratado em poucas linhas. O amor ideal, o encontro de almas, daqueles que só acontecem muito raramente na vida. Assim ele pensava. Elegeu-a sua musa, escreveu-lhe poesias que a ninguém mais mostraria. Deixou-se contagiar pela alegria das crianças e pela jovialidade propiciada pelo encantamento.

E, se há bruxas boas, também há as que não o são. Após comprovar seu poder de sedução, ela finalizara seu golpe com o abandono, utilizando o velho binômio renúncia/integridade. Apunhalara-o com a faca embebida em mel, para que sua partida lhe deixasse a saudade em vez da amargura. Para que houvesse algo a ser cultuado. E assim ela o condenava à maldição da errância: jamais poderia amar novamente, pois em sua boca havia um sabor já identificado, inigualável porque dotado da magia da primeira vez. Deixou-lhe no peito um vazio que acabou por dar lugar a um sentimento que era um misto de carinho e saudade, com o aspecto sublime da renúncia. Como se a integridade de seu caráter se ampliasse por se manter afastado de seu objeto de amor. Além disso, Narciso que se preza só se pode abalar por outro mais poderoso do que ele. E ela, ao se auto-ufanar de modo blasée, convencia-o de sua beleza, de resto nem tão grande assim. Mas, ao olhos dele, mais bela do que a própria Afrodite. E foi assim que, contrariando na prática o que dominava em teoria, ele retornou à proteção da caverna antes mesmo que seus olhos se habituassem à luz do lado de fora. Desatara as amarras que o prendiam à proa da embarcação e deixara-se seduzir pelo canto da sereia que agora fugia. Temendo morrer afogado, regressou às terras onde o mar nunca bate.

Amava-a, agora, mais do que nunca, com a certeza da distância e sem a ansiedade da partida. Ironicamente, sentia afinal o amor mais especial e que tanto admirava, decantado pelo filósofo: platonizara-o, e o fato de estarem separados intensificava o sentimento, não sujeito à corrosão do mundo real. O filósofo-Narciso e a musa-Afrodite seguiam, sentindo-se especiais: ela, pelo que podia despertar; ele, pela capacidade de sentir.

Entretanto, tamanho altruísmo e nobreza são incompatíveis com a natureza humana. E foi pela necessidade de liberar a porção animalesca que surgiu a terceira.
De beleza discutível e inteligência também, esta serviria perfeitamente a seus propósitos: poderia banalizá-la o quanto quisesse, sem o risco de se envolver novamente. Sim, porque ao amor-renúncia da segunda já estava acostumado. Era como estar permanentemente na gangorra, mas parado no alto, sem as idas e vindas, sem os altos e baixos. E esta, que nem de longe se podia comparar àquela, dava-lhe a segurança do não-sentir. Com esta, usava os termos mais chulos, vulgarizando-a mais do que o necessário. Com isso, triunfava duplamente: liberava suas perversões e taras, e punha-a no extremo oposto à outra. Como se, desqualificando a reles ninfa, enobrecesse ainda mais a Afrodite de seus sonhos.
Inicialmente, provocavam-se mutuamente, excitando-se com promessas e fantasias, prelibando o contato por vir. Mas nem a mais intensa fantasia resiste à repetição, e chega a hora de pô-la em prática. E assim, num belo dia – não, não foi belo, pois nada teve de incomum - , ele finalmente a possuiu, num rito de urros e grunhidos, além da melancolia posterior – Triste est omne animal post coitum . Mirando-a com o fastio de quem olha a comida após se ter empanturrado, deu-lhe um leve tapinha, despachando-a.

Ocasionalmente, a segunda procurava-o e o instigava, narrando em detalhes as oportunidades que lhe surgiam, às quais ela, Afrodite-virtuosa, bravamente resistia. Desculpava-se pela mágoa que causava, mas não se furtava a apunhalá-lo sistematicamente, reabrindo a velha ferida que o tempo teimosamente insistia em cultivar. Ele tornava-se então especialmente agressivo com a terceira, usando nesta toda a violência que jamais ousaria dirigir àquela. Ao profanar o corpo e os escrúpulos desta, punia, simbolicamente, o anjo de suas fantasias, soltando o seu demônio particular na outra.

Eis agora o filósofo-Narciso, nosso homem das três mulheres: uma tem-lhe a alma, num amor estruturalmente impossível, bem ao gosto dos românticos; outra, eventualmente, tem-lhe o corpo, restando-lhe ser o contraponto da amada; por último, a mulher-mãe, equilíbrio e fio-terra nesta esfera de antagonismos e contrastes. Não é nem o meio-termo, mas apenas o sustentáculo do mundo hipócrita de Narciso, Atlas que mal consegue levar a si mesma, mas essencial à sobrevivência do mundo das sombras.

Vemos agora o filósofo-Narciso, mais enrolado do que o fio com que Ariadne libertou Teseu. Houve, certa vez, uma outra... Mas, dada a dificuldade de classificação, não permaneceu. Não vamos desta falar. Talvez Narciso devesse mergulhar em suas águas e descobrir a verdade. Mas nem todo Teseu quer sair do labirinto...

 
 

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