R. E. M.
(Rapid Eyes Moviment)
Isaias Edson Sidney
 
 

- Alô! Luísa?

- Sim, quem está falando?

- Aqui é uma amiga... preciso falar com você...

- Amiga?... Que amiga?!

- Você não me conhece, mas somos amigas.

- Não estou entendendo. Quem está falando, por favor?

- Olha, o meu nome não interessa. Você pode me ouvir um instante?

- Bem... eu... acho que sim... Qual o assunto? Por que você diz que é minha amiga e não quer dizer o seu nome?

- É... somos amigas, sim, porque amamos o mesmo homem...

- De que você está falando?

- Do seu marido!

- !...

- É isso mesmo, sou a amante de seu marido!

- Deixa de palhaçada, tá?

Luísa bate o telefone. Amante de meu marido? Ora, só me faltava essa. Tem gente que adora uma brincadeira boba... O telefone toca de novo...

- Alô! Luísa? Não desligue, por favor. Não é brincadeira. Eu preciso falar com você...

- Se você não disser seu nome, eu vou desligar...

- Não... não faça isso... o assunto é sério. Preciso lhe falar do Roberto.

Susto! Roberto? Meu marido é o Roberto! Que quer essa mulher? Roberto está viajando...

- Olha, vamos parar de brincadeira, tá bem?

- Já disse, não estou brincando. O Roberto, seu marido, é meu amante...

- Você é uma cara-de-pau, uma... uma...

- Espere, não fique com raiva. Acalme-se.

- Como me acalmar? Você-não-sei-quem liga pra mim e diz na minha cara que é a amante do meu marido e quer que eu fique calma?

- Mas é verdade. E isso não é nenhum drama. Eu e o Roberto somos amantes há mais de dois anos...

A voz calma e segura do outro lado da linha acabou por acalmar Luísa e aguçar-lhe os sentidos. Num misto de susto, raiva e curiosidade, procurou controlar-se. Deve ser brincadeira. Essa mulher é louca ou está a fim de tirar um barato com a minha cara...

- Eu não acredito no que você está dizendo...

- Pois eu posso lhe provar: ele está aqui neste instante, ao meu lado...

- Como?!

- Não se assuste: ele está dormindo. Dormindo como um anjo, depois de termos feito amor loucamente...

- É mentira sua! Você está querendo...

- Não estou querendo nada. Escute. Não fale. Só responda ao que lhe perguntar...

- Espere aí!...

- Vou lhe provar o que eu disse. Posso lhe dar o número de sua identidade, de sua carta de motorista, nome dos pais, data de nascimento e tudo o mais... Mas eu sei que você não acreditaria. Então eu vou lhe dar só um detalhe: quantos homens você conhece que têm uma tatuagem de cometa no púbis... quase escondida entre os pêlos... na raiz do... pinto?

Tatuagem?... Cometa... no... mas é mesmo o Roberto. Estou ficando louca? Quem é essa mulher?...

- Do que é que você está falando? Não...

- É ou não verdade que o Roberto, seu marido, tem uma tatuagem de cometa?

- É... sim... é verdade... mas...

- Então, acredita agora que ele é meu amante?...

Luísa não respondeu. O ódio virou lágrimas e sufocou qualquer reação. A custo tartamudeou:

- O que... você... quer... de mim?...

- Eu? Nada! De você não quero nada. Pelo contrário, quero é te devolver o marido. Por isso, estou te ligando.

- Como?!...

- Preste atenção (a voz do outro lado continuava irritantemente calma, ganhando mais entonação, fazendo pausas indicativas de que precisa dizer uma coisa importante de uma só vez)... Não vou repetir... Eu e o Roberto nos amamos muito. Nunca gostei tanto de uma pessoa como gosto dele. Fizemos loucuras... mas isso não importa mais. Ainda o amo. Acontece que recebi uma proposta de emprego na Europa. É a oportunidade da minha vida... Não posso deixar de ir... Nada neste mundo me impediria de aproveitar a oportunidade. Não voltarei mais ao Brasil. Estou partindo esta noite, daqui a duas horas sai meu vôo para Lisboa. Roberto não sabe disso. Não tive coragem de lhe dizer... não sei se conseguiria ir embora. (Luísa ouvia, como se não fosse com ela, como se ali estivesse uma outra pessoa, num estranhamento e alheamento que nunca sentira antes. Mas não perdia uma só palavra. Aonde quer chegar essa mulher, meu Deus... que abismo...) Por isso estou te ligando, para devolvê-lo a você. Não sei o que você fará, mas vou lhe dar o endereço do motel onde estamos e você vem buscá-lo. Ele não deve acordar tão cedo. Não se preocupe com o porteiro: já conversei com ele e dei-lhe uma grana pra ele deixar você entrar. Basta dizer o número do apartamento. Você pode anotar?

Luísa saiu por um momento do torpor. Anotou rapidamente o endereço. Não ouviu direito as últimas palavras do outro lado. Algo como um pedido de desculpas. Bateu o telefone. Correu até o quarto. Vestiu um sobretudo. Sem despir a camisola. Calçou os sapatos. Pegou, no fundo armário, o revólver de Roberto. Enfiou-o no bolso.

- Joana, ô Joana, cuida das crianças que eu vou sair. Não demoro.

O carro deslizava pelas ruas molhadas e escuras, um zumbi na direção. Luísa guiava no automático. Às vezes acordando do torpor para conferir a direção. Mas como? Roberto... meu marido... depois de dez anos juntos... Como pôde fazer isso comigo? E nossos filhos? O que vai ser, meu Deus. Vou enlouquecer... Não pode estar acontecendo comigo... com nós dois... E agora? Cenas de um casamento. A festa. Os pais. Os padrinhos. A lua-de-mel. Tesão. Paixão. O nascimento dos filhos. As pequenas brigas... Nada de mais. A paixão, a tesão, o amor, o respeito nunca deixaram de existir. Os amigos os consideravam um casal modelo. Traição! Traída! Corneada! Será verdade? O carro pára à entrada do motel. Luísa, sem pensar, repete as palavras que a outra dissera. Titubeia. O que estou fazendo aqui, meu Deus? E se algum amigo nosso me vê? O que eu faço? O porteiro indica o caminho. Neutro. Mas Luísa vê em seus lábios um sorriso de escárnio. Meu marido.... num motel.... com outra... e eu, aqui, fazendo o quê? O carro entra na garagem e a porta se fecha. Luísa apaga os faróis e tenta entrar no escuro. Uma lâmpada fraca ilumina os degraus de uma escada ao fundo, à esquerda. Luísa sobe a escada. Nada sente. Um autômato com uma arma na mão. Trêmula, mas segura. Empurra a porta e entra. Um quarto comum de motel. À direita, o banheiro. Em frente, tendo por fundo uma cortina de mau gosto, a cama. Enorme! Um homem adormecido. Nu. De lado. Suor frio. Luísa se aproxima da cama. Silêncio. Só o ressonar pausado do homem adormecido faz contraponto com o ruído do ar condicionado. Aproxima a arma da cabeça do marido. O dedo no gatilho. Não tem força para acioná-lo. Contempla seu semblante. Um anjo. Um demônio. Um homem. Meu homem. Ainda bonito nos seus trinta e cinco anos. Magro. Esguio. Quase sem barriga. A fronte larga, os cabelos revoltos. Alguns poucos fios brancos. Meu homem. Seus olhos percorrem o corpo abandonado, ali, no leito daquele motel, demoram-se em suas nádegas redondas, em seu membro murcho. O guerreiro desprevenido. Lentamente, Luísa pousa a arma no chão, sob a cama. Despe o sobretudo. Tira a camisola. Tira a calcinha. Nua. Olha-se no espelho do teto. Seus seios ainda estão firmes. A bunda grande, coxas bem torneadas. A barriga tem algumas estrias, mas o ventre é perfeito e liso. O ângulo do espelho é estranho. Mas Luísa gosta do que vê. Dá a volta à cama. Deita-se ao lado do homem. Sua imagem no teto torna-se mais nítida, mas ainda estranha. Quem está no espelho? Nunca se vira assim. Imóvel. Bonita, ainda, bonita. Apesar dos filhos. Amo meu marido. Tenho uma casa agradável. Amigos. Uma vida confortável. O cheiro da pele de Roberto aguça-lhe os sentidos. Abraça-o. O homem se mexe um pouco e aninha-se em seus braços. O reflexo no espelho também. Lá em cima é um outro Roberto, uma outra Luísa. Que a olha, também. Com sorriso maroto ou é impressão minha? Ficam assim pela eternidade de uns quinze minutos. As quatro figuras abraçadas. O homem abre os olhos. Devagar. O que vê é apenas um mamilo. Suspira. Mordisca-o levemente. Depois suga-o com prazer. Ergue os olhos. Você? Que bom que esteja aqui. Seus lábios colam-se aos lábios cerrados da mulher. Suas mãos percorrem-lhe as curvas do corpo. Estacionam no monte de Vênus. Os dedos hábeis já conhecem o caminho. O caminho do prazer. A amante. Ela devolve-lhe o beijo. A vagina úmida pede mais. Amam-se. Loucos. Animais. Quanto tempo!

Luísa recorda vagamente o caminho de volta a casa. Pararam numa pizzaria? A crianças. A festa. Os refrigerantes. O vinho. O banho, longo, a dois. A noite de paixão. Dez anos antes. Antes dos filhos. Antes do casamento.

Passaram-se mais de três meses. Roberto nunca foi tão apaixonado, tão amante, tão pai, tão presente. Às vezes, no frio de julho, ao atiçar o fogo da lareira, ela julga perceber no canto dos olhos do marido uma lágrima que teima em não se formar.

Uma noite, Roberto levanta os olhos do livro:

- Luísa, cadê meu revólver. Procurei-o para limpar e não achei. Você sabe onde ele está?

Luísa estremeceu.

- Não sei, meu bem, não sei...

 
 

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