ESPELHADOS
Luciana Franco
 
 

Eu o rejeitei desde o primeiro momento.

Já na primeira consulta, feita a contragosto, por insistência de um colega a quem não pude recusar, sobreveio o nojo.

Era um tipo blazé. Arrogante. Lábios finos e um nariz acentuadamente aquilino, empinado sobre tudo como se os outros à sua volta, quando sacudia a vasta cabeleira escura e mirava o nada com seus olhos estúpidos, lhe devessem reverências.

Lembro-me que naquela manhã fresca de segunda-feira, retribuiu-me o cumprimento com a mão inerte. Uma mão mole, fria e branca, quase feminina, que me fez, não sei por que cargas de associações, pensar em meus irmãos hirsutos, fortes e robustos como touros, grosseiros como meu pai, com suas mãos nodosas, calejadas, eternamente sujas.

Petulante, a modos de provocação foi tirando os sapatos e se deitando muito à vontade no divã.

Como não me dissesse nada e eu tampouco fizesse menção em lhe dirigir a palavra, o silêncio postou-se entre nós dois em pé de batalha.

Não cedi terreno, mesmo porque o terreno era meu e ele que não viesse conquistá-lo. Esperei quinze, vinte minutos, até que mil formigas em artilharia pesada de repente se instalaram no seu silêncio vazio de músculos. Incomodado, por fim sentou-se em riste e confessou que viera a contragosto, porque o pai o obrigara.

Ódio à primeira vista, ou antes dela, enfim, não nos queríamos e isso era óbvio para ambos.

Só depois de umas dez sessões diagnostiquei o seu domjuanismo. Bruno Galucci de Albuquerque e Medeiros Junior era um rapaz muito bonito. E sedutor. O problema era que, como todo sedutor inveterado, já perdera os filtros. Envolvia-se com qualquer uma, o que importava era a conquista, como foi me revelando.

Mas não que revelasse tudo. A doença mesmo vinha era com a intimidade, soube disso mais tarde. Depois de tê-las, às suas vítimas, se cansava delas num fastio e, então, para meu asco maior, as espancava. Era um rapaz violento. Alguns processos sérios na polícia, que a família abafava, eram os reais motivos da sua estada ali comigo.

Repugnância. A história me causou repugnância. E tanto o desprezei por aquilo que o pobre sensível como o diabo percebeu e se deu todo para mim. Confiava. Pela primeira vez confiava. Saboreei minha vitória. Eu reinava sobre ele que, por fim vencido, se deixava analisar.

Tornou-se um livro aberto, fortemente expressivo entre uma volta e outra das páginas, quando se contorcia todo no divã, querendo nascer outro. Entrava num transe para além da alma.

Foi quando começou a me desejar. A mim, à sua terapeuta, baixinha e gordinha, eu, a quem certa vez ele, indelicadamente, mandara no lugar de flores um maço de carquejas. Não gostava de gordas.

Aquilo, apesar de machucar minha vaidade, protegia-me das inevitáveis projeções paciente-terapeuta e, portanto, eu me acreditava livre de suas investidas sedutoras.

Não de todas. A última vez que vi Bruno Galucci de Albuquerque e Medeiros Junior, ele entrou em meu consultório como sempre fazia toda manhã às segundas-feiras, tirou os sapatos e, sem olhar-me nos olhos, apresentou a história. Esmero conquistador. Ele me estudara.

Começou por descrever, detalhadamente, a menina que eu fora, com uma precisão insuportável de detalhes que me fez encher os olhos com lágrimas quentes de ódio.

Depois, sem que eu dissesse não, o que deveria ter feito, mas já infinitamente seduzida eu era toda ouvidos, descreveu-me adolescente, com meus complexos e culpas e seios e quadris enormes, com minha, principalmente, irremediável frustração latejando no meio das pernas.

Analisava-me clarividente, como quem rasga uma bolha.

Olhos fixos no nada, descrevia meu corpo, cada reentrância dele, cada pedaço, cada defeito, como se fossemos muito íntimos, e estivéssemos nus, mais do que nus, como se estivéssemos um dentro do outro.

Descrevia meus seios, minhas coxas, meu sexo, o formato, a cor e, entre uma obscenidade e outra, que eu também não conseguia evitar, falava em como me pegaria e me chuparia e me foderia toda e me faria gozar.

Ele estava em transe. Eu estava perplexa. Em nenhum momento nos ousamos fitar, mas sabíamos-nos excitados. Eu atrás do divã mordia os lábios, cerrava com força os dentes e deixava, sim, eu deixava que ele se tocasse e esperava, com loucura, com ânsia, com sofreguidão que finalmente lhe saltasse para fora das calças o sexo duro, úmido e viscoso, jorrando sêmen.

Foi então que, para meu constrangimento e surpresa, súbito ele se dobrou em decúbito fetal, levou o dedão à boca e, fechando os olhos, começou a sugá-lo com força. Meu peito em vão ardeu. Um bico de seio se enrijecera como se fosse verter leite. Sai correndo da sala. E sabia, como quem abandona uma cria, que não desejava por nada neste mundo vê-lo outra vez.

 
 

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