A RÉPLICA SEM TRÉPLICA
Ronaldo Torres
 

No início era um charco. Depois um vilarejo. Mais tarde... Lagoa Azul.

A Lagoa Azul é a Lagoa Azul, nada mais do que a Lagoa Azul, apesar de não existir nem mesmo lagoa seca por lá e ninguém saber de onde vem esse nome. Uma fileira de casas estendidas no meio do sertão, uma Praça do Mercado, um mercado na praça, um pé de tamarindeiro acalmando a inclemência do sol e uma igreja católica apostólica romana onde os pecadores expiam seus pecados em penitências martirizantes, impostas pelo padre da paróquia do Divino Espírito Santo, que vê pecado até em piscadela de olho.

O canto da acauã acalenta a alma sofrida dos quase mil eleitores devidamente recadastrados no Tribunal Regional Eleitoral e que, tempos idos, a maioria torcia, pedia e gritava histérica "Queremos Mandioca! Queremos Mandioca!" e votava em Joaquim dos Santos Mandioca Júnior, aclamado em praça pública, deixando as mulheres histéricas ao bradarem esse refrão. Mandioca, que despertava paixão, depois de empossado, invertia o bordão: mandioca no povo!

Há um delegado de polícia que vive a reclamar dos seus quinze anos como delegado naquela cidade sem nunca ter dito a famosa frase "teje preso" e depois encaminhar o meliante para o xilindró debaixo de uns catiripapos e de duas dúzias de "bolos" de palmatória, conforme aprendeu em um curso intensivo de defesa pessoal, antes de receber a estrela de xerife.

O prefeito é um folgado, preguiçoso, incompetente, para ser mais fiel aos fatos. Passa a manhã cuidando dos seus afazeres particulares, à tarde se refestela numa rede cearense e à noite corre atrás das raparigas. A Administração Municipal vive entregue às moscas, reclama a oposição.

Às moscas não. Aos urubus, às aves de rapina, aos piratas do erário, refuta o povo, indignado, arrependido de ter trocado o voto por um prato de buchada. O cardápio foi indigesto. Será preciso um sal de frutas eleitoral para o intestino administrativo voltar a funcionar normalmente.

O que piora as coisas para o prefeito é que nada acontece e os dias são exatamente iguais, não prevalecendo o agouro de "nada como um dia atrás do outro". "Nada"é uma constante que se confunde com a solidão. Se o tempo não pára, às vezes dá a impressão de que caminha para trás, tal qual o reverso do horário de verão, quando atrasamos o relógio em uma hora. E, voltando o tempo, o povo dispõe de oportunidade extra para malhar o nobre administrador.

Pensando nisso, o prefeito tomou a sábia decisão de quebrar a rotina melancólica dos seus munícipes: inauguraria uma obra de impacto, que calasse a boca dos seus detratores e fizesse a oposição meter o rabo entre as pernas, ou melhor, morder a língua e morrer com seu próprio veneno.

Foi assim que em uma manhã de sábado, em pleno dia de feira, a cidade acordou com uma movimentação incomum de gente, de político e de carro. Havia até engarrafamento de carro de boi e houve um abalroamento de uma carroça com um carro de jegue. O delegado, mediante a oportunidade de espantar as traças do seu livro de ocorrência, se enfatiotou, passou brilhantina no cabelo e seguiu para o local do sinistro. Lá chegando, não encontrou mais nada: os envolvidos haviam feito um acordo e cada um seguiu seu destino que, aliás, era o mesmo, ou seja, o Largo da Prefeitura.

O Largo da Prefeitura, como também era conhecida a Praça do Tamarindeiro, estava lotado. O prefeito mandou vir um caminhão de cerveja da cidade vizinha, contratou prefeiteletes de mini-saia vermelha para servir o povo e uma banda de pífano de Caruaru para animar a festa. Políticos desfilavam apertando a mão dos eleitores, que aproveitavam para dar "uma facada", como é chamado o ato de se pedir dinheiro aos políticos.

Pedro Legal, um humilde roceiro, inventor do primeiro carro de jegue, estava presente. A patente da sua invenção lhe dava acesso à sala do prefeito sem precisar intervenção de cabo eleitoral. Também pesava o fato de ser ele o chefe de uma família de vinte e dois eleitores. Em Lagoa Azul, eram votos suficientes para eleger um vereador.

O prefeito tinha a mania de zombar dos humildes, fazer troça da ignorância dos roceiros. Ao avistar Pedro Legal na sala, quis se fazer de engraçado para seus convidados de honra. Abraçou o modesto e ignaro agricultor, pediu silêncio, e falou alto para que todos ouvissem:

- Quero apresentar aos senhores o maior rufião e o maior pederasta das redondezas: Pedro Legal!

Silêncio e risos constrangidos. Pedro Legal, emocionado com as bonitas palavras do prefeito, pensando tratar-se de um elogio, respondeu tímido e despretensioso:

- Ôxente, doutô prefeito, num sô isso não! Issaí é o sinhô quié rico! É o sinhô seu pai, os seus fio... Quem sou eu pra sê essas coisa!?

 
 

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