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Ubirajara Varela
 
 

Nas noites em que consigo dormir, me vejo dirigindo um Mercedes Benz azul marinho, modelo E500, com motor v8. Uma verdadeira máquina. A palavra soa até diferente: máquina! Proparoxítona, confortável, elegante. O cd player toca uma música adequada, remetendo-me à total liberdade, à ausência de limites, ao que poderia se chamar de céu. Ao longo da estrada, algumas pessoas conhecidas me vêem passar e acenam. Eu penso: morra, canalha! Se tivesse tempo, eu voltava e atropelava esses filhos da mãe. Mas não posso perder nem um minuto. A estrada é curta.

Até hoje, o mais próximo que cheguei desse sonho foi uma caneta. Brinde surrupiado numa entrevista que fiz, quando ainda acreditava em emprego. Uma reles caneta tinteiro, metálica, que não mancha nunca o papel, mesmo se eu passar - e eu sempre passo -, minha mão canhota sobre a tinta preta quando escrevo. Ser canhoto neste mundo não é fácil. Peixe fora d'água. Tão difícil que não posso comer uma lata de milho verde em conserva sozinho. Tenho que pedir para alguém a abrir. Sempre. Já houve caso em que saí de madrugada e parei o primeiro na rua, pedindo que me ajudasse com uma lata de leite moça. Pensou que eu era doido. Dou razão. Acho que também pensaria o mesmo.

Mas, pelo menos, a caneta me serve para anotar meus sonhos e pecados. Com a caneta eu escrevo palavras; e palavras são potentes. Não como um motor v8, mas são potentes. Isto é o que me resta numa vida miserável como esta: escrever as tantas frustrações num bloco de notas e compartilhá-las. Essa é a ironia da vida. Você é honesto, trabalha, leva uma vida dentro da moral e dos bons costumes, não ataca o pudor, e o que merece? Uma caneta tinteiro por isso. Parabéns, felizardo! Parabéns, porra nenhuma! Se a vida é a loteria dos desafortunados, acho que tirei o primeiro prêmio.

Não gosto de drogas para sarar a dor. Nem maconha, nem cocaína, nem Marlboro, nem cerveja, nem fluoxetina, nem prozac, nem viagra. Doa! Nenhuma heroína me salva. Não tenho musas, a não ser a minha Mercedes. Oh, minha Mercedes. São sonhos bons, aqueles em que eu saio com você. São pequenos lampejos de prazer. Só sonho. Mesmo assim seria uma grande performance!

Novamente eu consigo dormir e sonho. Estou na minha Mercedes. Resolvo testar se realmente a máquina faz os 0 a 100 km por hora em 6 segundos. Provo e aprovo. Também, com uma potência de 306 cavalos. Consigo um desempenho invejável. Acho que ninguém pode superá-lo.

Acordo e escrevo: preciso arrumar um vício logo. Estou morrendo aos poucos. Quero morrer depressa.

 
 

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