CARNE FRITA
Gustavo Villas Boas
 
 

Então ela acordou, ergueu o tronco, colocou os pequenos pés no chão e respirou fundo. Ainda sentada na beirada da cama pegou um copo d'água no criado-mudo. A cama e o criado-mudo mobiliavam o quarto, a janela era vedada por jornais, essa era toda a casa de Gabriela. Uma lâmpada crua, pendurada pelos fios iluminava as paredes: fissuras, mofo e tinta descascada decoravam sua vida e harmonizavam o lar. A parede também ostentava um círculo de cor mais clara, onde um houvera um relógio. No dia em que Gabriela optou por ser independente de tudo, tirou as horas dali.

Calculou ser depois do meio-dia, tamanho o calor e o cheiro que inundava o ambiente: o azedo dos dias incrustados e bife fritando com alho. Teve fome. Bebeu de um gole a água e cuspiu dentro do copo toda a fumaça, o álcool e os paus da noite anterior.

Levantou-se.

Colocou uma camiseta ''Vote Maluf'' e calça de moletom. O cabelo despenteado, olhos inchados, batom borrado. Uma mulher tão sensual quanto uma bacia de quiabos, para atravessar o corredor da pensão. Gabriela achava que desfilando horrores evitava o olhar constrangedor de qualquer bebâdo que morasse por ali. Ou os comentários e toques de Irineu, filho da dona da pensão, um adulto retardado cujo braço era do tamanho do tronco de Gabriela. Irineu tentava ser carinhoso, mas tinha a mão rebuscada de trabalho pesado e pouca habilidade com as palavras.

Assim que abriu a porta, Gabriela percebeu Irineu ali, parado, em frente à escada. O cigarro fedido, enrolado porcamente em papel engordurado, pendia dos dedos e soltava uma fumaça amarelada que se condensava quando cruzava com os poucos raios de luz que invadiam a pocilga. Gabriela respirou fundo. Teria que cruzar Irineu para chegar até o banheiro.

Grudou os olhos no chão e com passos lentos, quase sem tirar os pés dos tacos de madeira, foi em frente. Nunca teria coragem de fechar a porta na cara de Irineu, tinha certa pena simpática pela ingenuidade do rapaz. Era um brutamontes constantemente acossado pela mãe, a quem Gabriela considerava uma bruxa: apostaria que a caveira magra fora coberta por pele de frango, não fossem as manchas roxas e uma ou outra protuberância negra e coberta de pêlos que explodiam por todo o corpo. Gabriela às vezes pensava em contar as pequenas aberrações, pois tinha certeza de que elas mudavam de posição e quantidade. E nada tirava de sua cabeça que eram essas pequenas bolas negras que exalavam um horrível cheiro de pomada azeda que acompanhavam Dona Birra o tempo todo. O quadro de horror se completava para Gabriela quando Dona Birra vinha cobrar o aluguel. ''Minha filha, o dinheiro do mês minha filha. Tá sem cliente, minha filha? Parece puta velha'', a voz sufocante, baixa e cheia de pequenos assobios: 60 anos de cigarro. O horror.

Quando cruzou Irineu, Gabriela surpreendera-se. Ele estava imóvel e manteve-se. Entrou no banheiro. Mijou. Escovou os dentes. O pensamento em Irineu e sua estranha paralisia. Saiu mais rápido que o costume e o gigantesco corpo ainda estava ali, parado. O cigarro já ardia nas falanges, e nem o mais leve dos movimentos. Gabriela teve a certeza de que sentia cheiro de carne queimada, até. A garota passou rápido por ele e entrou no quarto. Estranhava.

Trocou-se em alguns minutos. Fumou um cigarro. O cheiro de bife já não era cheiro de bife. Alguma coisa queimava em algum das centenas de depósitos humanos da vizinhança.

Saiu do quarto e Irineu ainda estava lá. Algo estava muito errado. Aproximou-se do homem. Olhou nos seus olhos: abertos, vidrados, nem o mais leve movimento. Cutucou um dos enormes braços. Nada. Beliscou o enorme lábio inferior. Irineu estava endurecido.

Gabriela sorriu. Estava tensa. Desceu as escadas rapidamente. A visão portaria da pensão velha era assutadora. Dona Birra congelada com uma vassoura quase a tocar o chão. Um dos moradores, constantemente bebâdo, entrava pela porta, um pé e uma mão no chão, para auxiliar o equilíbrio a cada passo. Pela porta Gabriela viu o mundo parado.

Correu ao boteco da esquina. A fumaça da chapa tomava o lugar: um presunto enrugado e negro queimava. Na pequena televisão um jogo de futebol: 22 homens como se fossem bonecos. Gabriela pegou uma coxinha, dois pacotes de cigarros e olhou no relógio de um dos frequentadores do bar. Tudo normal, o tic-tac mais audível do que nunca.

Saiu do boteco com um plano na cabeça e um cigarro na boca. Voltou a pensão. Segurou Dona Birra pelos braços e arrastou o pequeno corpo até a cozinha. Um cubículo engordurado no qual latas velhas faziam às vezes de panela e o arroz durava de segunda a sexta. Gabriela tinha dificuldade em arrastar Dona Birra naquele ambiente, já que os quatro pés pelos quais estava responsável colavam no chão imundo. Jogou a mulher sobre um saco de batatas e acendeu o fogão, de onde saíram as piores comidas que tinha provado em toda sua vida. Colocou a cabeça da mulher dentro do forno e sorriu. ''Tchau, minha filha'', disse, antes de deixar a Dona Birra cozinhando.

Subiu as escadas saboreando cada momento daquele dia tão especial. Ao deparar-se com Irineu, tocou seu rosto bruto com as costas da mão. Arrepiou-se toda, e teve a certeza de os olhos estanques iluminaram-se. Um beijo molhado na boca antes de entrar no quarto.

Fumou um, tragos lentos e despretensiosos. Deitou-se com a certeza de tudo estaria normal na hora que acordasse. Normal, não. Ela teria cigarros para a semana inteira e sem Dona Birra.

Gabriela sonhou naquela noite com um imenso campo de grama azul-clara e cheiro de morangos. Ela era pequena, mas não criança. Corria, jamais cansava-se. Estava sozinha, nunca solitária. Estava livre e só acordou com as sirenes na rua e o movimento na casa.

 
 

fale com o autor