DESTROÇOS
Vera do Val
 
 

A mulher revira-se na cama procurando o sono. Irritada, levanta e vai até a janela. A noite derramara-se em pequenas pancadas de chuva que cintilam no asfalto. O colorido do anuncio da farmácia em frente tinge a garoa fina, ora rosada ora azul, como se amanhecesse. Apoia-se ao postigo e, delicadamente, toca os olhos doloridos. Ardem. Ela não consegue parar de pensar. Sente a falta dele a cada respirar. O corpo arfa e pulsa, intocado. A camisola sedosa está úmida e amarfanhada.

Vê o bêbado surgir na esquina, trôpego e maltrapilho, empunhando uma sacola suja e uma garrafa. Vê um cachorro vadio virando com estrépito o latão de lixo e os restos da vida de alguém se esparramando pela calçada. Destroços. Era assim com ela. Esparramada na saudade, destroçada pela ausência do homem que amava. Homem menino. Vadio tal qual o cachorro; ela lhe sentia a falta.

O bêbado gesticula no ar brandindo a garrafa e conversa com seus fantasmas. Ri alto. Aproxima-se do cachorro e o afaga. O animal rosna e refuga. Ela reflete que esqueceu o riso em uma gaveta qualquer do quarto vazio. Vai até o armário e pega o uísque. Volta para a janela, emborca o gargalo. Deixa escorrer pelos cantos da boca sentindo o arder do álcool nos seios. O bêbado está sentado ao meio fio, pensativo e imerso no rosado do neon. Ela recorda dias felizes e afasta os cabelos do rosto.

O cachorro acaba a exploração do lixo. Abana o rabo e, farejando, aproxima-se do bêbado. Impassível, mergulhado em seus pensamentos, o bêbado não lhe dá atenção. Ela bebe e quase lhe escuta a voz. Contrai-se, arrepiada.

Desinteressando-se o cachorro vai embora à procura de outros destroços e outros afagos. O bêbado murmura baixinho e atira a garrafa vazia longe. Ela vê os olhos dele chorarem.

Mansa, apanha o casaco na cadeira e sai, deixando a porta aberta. Desce as escadas sem ruído. Percebe a garôa nos cabelos. Sorrateira, senta-se na calçada, ao lado do homem. Oferece-lhe a garrafa.

 
 

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