RITOS DE PASSAGEM
Luciana Franco
 
 

- Posso ver o que você tá escrevendo?

O impulso foi imediato, infantil e reflexivo, as duas mãos caíram sobre os papéis bruscamente, tampando-os dos olhos dela. Claro que não, quase gritei, mas o grito, o susto, o medo, tudo explodiu para dentro. Afinal, Klara já estava ali, grudada em mim, ao lado da minha carteira. E o meu coração saiu pela boca.

- Desculpa, eu não queria...

- Tudo bem, interrompi gaguejando. E fui logo juntando as folhas e fechando o caderno e guardando tudo na pasta e fechando a pasta e pegando a mochila e tentando, se força houvesse naquelas minhas pernas finas, me esgueirar dali o mais imediatamente possível. Mas quem disse que foi possível. Klara barrava a passagem do meu corpo, do meu sangue, de todos os meus músculos imobilizados pela sua presença e o máximo que fiz foi continuar onde estava, fechado e tremendo por dentro no cubículo da carteira, os pensamentos num transtorno. E se ela tivesse lido alguma coisa? E se tivesse visto o seu nome no meu caderno?

- Você está bem, perguntou debochada. Ou é vergonha do que escreveu aí, hein, deixa eu ver? E percebi como que uma sombra, a pontinha de uma maldade rasgando-lhe o canto da boca. Fitei-a sério. Mas os olhos dela desmentiam tudo, eram olhos bons, sorriam doces, com aquele brilho azul marinho dos dias de chuva que não cai.

- Tudo bem, tornou mais doce ainda do que nunca. Eu também tenho vergonha de algumas coisas, mas mesmo assim eu mostro. Olha aqui...

E foi levantando, para meu espanto, lentamente, com as duas mãos, como se tivesse ensaiado várias vezes à frente do espelho aquela cena, foi levantando as saias até me mostrar as coxas inteiras e, bem no meio delas, formando um triangulo de luz no meu peito, a calcinha branca, lisa, acetinada. Eu não acreditei, mas ela tinha feito aquilo comigo. E muito naturalmente, como as tinha levantado, soltou as saias num só gesto, apanhou a mochila e saiu correndo, rindo maldosa da minha perplexidade.

A sala vazia naquela tarde teve um gosto que por muito tempo ainda me esquenta o rosto. O vento balançando as cortinas brancas da sala balançava também a saia de Klara e as coxas de Klara e o púbis de Klara, que eu adivinhava e desejava. E tudo era tão calmo e leve e acetinado que a cortina ia e vinha, me chicoteando a cara em brasa, e eu sequer notava que era fria e fina a chuva em tudo.

Klara chegou naquele ano. Estávamos todos de saco cheio do Colégio. Era o último ano e finalmente estaríamos livres. Cada um, à sua maneira, fazia um plano. Cada um esperava da vida o que quer que fosse que estivesse para fora das portas, dos muros, de toda aquela vida que já conhecíamos. Queríamos novidades. E a novidade, por incrível que pareça, chegara de fora para dentro, transferida de uma outra escola, loira, os olhos azuis profundos, olhos marinhos, os cabelos em cachos, anelados raios de sol. E aquele sotaque levemente alemão. Curiosos, cada um de nós, à sua maneira, com o seu trunfo, se pôs em pé de batalha para conquistar Klara.

Mas passaram-se os meses, os trabalhos, as provas, o semestre, as férias de julho, novamente o começo das aulas, novas provas e trabalhos e nada de Klara dar bola para marmanjo nenhum que fosse. Sentada na primeira fila da primeira carteira, concentrada, sozinha, era uma menina tímida de poucas palavras.

Quem poderia entender como se processara aquela transformação, que hormônios saltaram justamente faltando um mês para acabar o ano, e porque eu, justamente eu, havia sido o escolhido por eles. Não tive sequer como compartilhar meu transtorno com algum amigo, não haveriam de acreditar. Eu tão-pouco acreditava. E no fundo mesmo talvez não quisesse era compartilhar nada com ninguém, egoísta que estava daquela história.

Eu não soube como encará-la no dia seguinte ao dia das coxas. Mas ela, muito desinibida, soube me cercar muito bem com astúcias de fêmea. Esperou novamente que todos saíssem da sala e, ao final da aula, me convidou para estudarmos juntos, durante a tarde, para a prova de física. Convite que acatei prontamente.

Entre uma fórmula e outra, no entanto, ela me falou mais foi dos livros que lia, dos autores que gostava, das músicas que ouvia. E também, muito interessada, se era mesmo verdade que eu escrevia poesias eróticas. Se eu podia mostrar alguma para ela.

Quem foi que espalhou aquele boato pelo Colégio, ainda hoje não sei. Se fora para denegrir a minha imagem, o tiro saíra pela culatra e tenho, quem diria, uma dívida de gratidão para com esse meu detrator.

Ousada, brincalhona, provocativa como eu nunca a vira, Klara esboçou-me a teoria dos anéis imantados que lera em algum livro. Ela bem ao centro, ela não, seus olhos, sua boca, os cabelos, a nuca. Peitos, pernas, coxas. E o sexo, principalmente o sexo, que, se eu quisesse, ela me mostraria uma hora. Seria a minha musa inspiradora, dizia. E antes que eu falasse qualquer coisa, despedia-se de mim com um riso medonho, assustador, pisando ares altos de imperatriz ou feiticeira ou lilith primeira que me metia um medo danado.

Claro que Klara me inspirava, sem dúvida, temor e ternura, tudo misturadamente, a minha musa. Mais temor do que ternura, é verdade, mas essas estranhezas da inspiração, quem vai entender. Naquele tempo eu me deixei conduzir por ela, meio cego, tateando tonto o que eu não entendia.

Demos para estudar juntos todas as tardes. E cada tarde ela vinha com uma surpresa. A segunda maior depois das saias aconteceu às vésperas das provas finais, quando me convidou para ir à sua casa.

Como escrever sobre aquilo se nem sei mesmo se fui eu quem foi parar lá. Todo o caminho num tropeço. E os olhos marinhos de Klara abrindo a porta. Por que sempre chovia naquelas horas? A minha roupa molhada grudada no corpo e ela, muito solícita, me levando para um quarto ao fundo da casa onde pegou uma toalha e me secou os cabelos.

Como escrever poesias eróticas se Klara naquela tarde chuvosa me inundou com seus olhos marinhos e me envolveu com seus braços de algas e me afogou em sua boca sem guelras. Eu não respirava como ainda hoje sinto que o ar me falta. Como pude desejá-la tanto e, petrificado como uma besta, tudo o que fiz foi responder aos seus beijos com nervos covardes de aço e sair correndo dali justamente no momento em que ela me abria o mais imantado de todos os anéis que um poeta pode desejar.

Velas brandas acetinadas pelo vento. Calmarias em triângulos no meu peito. Janeiro entrou com muito sol e nós crescemos. Esses rituais todos, vocês sabem. Mais tarde ainda haveríamos de nos encontrar para uma última surpresa. Já sem espantos, meus nervos se derreteram numa espuma branca na praia clarividente das coxas de Klara. E nós rimos muito dessas poesias todas da vida.

 
 

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