PEQUENO BESTIÁRIO
DA NATUREZA HUMANA
Zeca São Bernardo
 

Rangel aposentou-se a contra gosto...muito á contra gosto, diga-se de passagem, mais de vinte anos de serviços prestados e nunca, se quer, tivera o registro de um único atraso! Tão pouco reclamava dos plantões ou de quando os colegas pediam-lhe para que trocasse de horário com eles.

Apenas assentia com a cabeça e logo estava atrás da velha mesa de alguma delegacia. Trabalhara no interior na capital, fora do estado e onde quer que aparecesse possibilidade de pleitear alguma transferencia lá estava o bom e velho Rangel! Prestativo, educado, calmo e compassivo.

Corria á boca miúda, por parte de seus colegas, que tivera o corpo fechado ainda criança pela avó materna que era mãe de santo e filha de escravos. Outros falavam que seus nervos eram de aço e isso o tornou uma espécie de mito entre os escrivães de polícia de todo o país. Aliás, país que conheceu quase todo nesses anos todos de serviço.

Dizia-lhes não ser uma coisa nem outra, apenas procurava equilibrar-se entre uma ocorrência e outra de maneira que não levasse os problemas do trabalho para casa e vice versa. Mesmo assim poucos entendiam sua estranha força e aparente descaso ante o que ouvia todos os dias.

Mas as velhas mãos já não eram tão ágeis e os olhos cansados teimavam em confundi-lo quando do uso do computador. E pensar que o velho escrivão chegou á registrar muitas ocorrências á mão, quando de sua estada no que hoje é conhecido como o estado de Tocantins!

Hoje descansa em sua chácara enquanto prepara suas memórias e escreve alguma poesia. Entre uma ou outra visita dos netos e dos filhos distrai-se procurando na memória pelas histórias mais estranhas que viu e ouviu.

Esses vagabundos têm cada desculpa! Contam cada história na frente do doutor delegado- costumava dizer a quem pergunta-se- têm aquela que nunca te contei! Certa vez um sujeito acusado de estupro confessou para certo doutor que havia praticado o delito sim, só que a "moça"; o provocara havia meses e consentira com o fato...só que tratava-se de uma menina de cinco anos! Cinco anos, enfatizava.

E aquela do médico maluco que se apaixonou por um cadáver durante uma autopsia e se matou! Ou aquela da mulher que combinou de matar o marido com o amante e acabou sendo ela a vitima do crime pois desconhecia que os dois eram namorados!- insistia, para quem quisesse ouvir.

Ou a do delegado que quase foi em "cana" quando descobriu que nenhum de seus três filhos eram seus e sim de seu irmão- e assim, seguia desafiando o bom senso, a imaginação e a indignação de seus ouvintes.

De duas coisas sua esposa já desistira: primeiro de convencer-lhe a desistir de escrever tal obra e segundo de fazê-lo aposentar a velha máquina de escrever. Á qual recorria em suas pretensões literárias.

Certa vez atrevi-me a perguntar-lhe qual nome daria ao distinto volume e resoluto disse-me:

- Pequeno bestiário da natureza humana!

Questionei-lhe o por que de tal escolha e ele me afirmou:

- Filho, o ser humano é uma besta feroz em dois sentidos distintos: primeiro, não consegue conter seus instintos animais e segundo- e talvez o mais importante- não se vale da capacidade de raciocínio que o Criador lhe proveu e só faz besteira!

Não sei se o nome é o melhor ou é só o mais apropriado nem sei se o livro será um sucesso ou mais um fracasso homérico de um novo e desconhecido autor. Só sei que vou compra-lo...

 
 

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