SOBRE SORTE, TALENTO E GUARÁS
Daisy Melo
 

Nunca tive sorte.

Ou talento... Mas inventei que tinha.

Acreditaram.

Da mesma forma que acreditaram que eu escrevia.

Não é fácil misturar umas palavras bonitas diante da impotência da página nula. Mas eu inventava. Ainda quando a palavra me dilacerava inteira, transformando em desalento as minhas frases inexatas. Mesmo quando o óbvio da grafia imprecisa transformava em luz minhas insignificantes metáforas.

Inventei que era simpática, bonita. Nem me olharam... Só aceitaram.

Enganei todo mundo. Pensando bem, tive sorte. E talento.

Afinal, quem consegue enganar todo mundo, todo o tempo?

Mas cansei. E hoje, com o coração murcho e amargo (a pele tão fina e branca que se saio ao sol desboto e fico que nem papel de seda enrugado), abro minha página derradeira (aquela com um marcador amarelo de antigo e sujo de descaso) e vejo que está vazia da flor seca que marcou, um dia, meu desejo esquecido.

Cheguei numa idade em que posso tirar todas as máscaras, destravar o baú e remover de dentro as roupas sujas com cheiro de mofo e suor. E colocar, enfim, meu corpo de savana, já seco das lágrimas que percorreram meus desvios e atravessaram meu leito de caatinga.

Eu, toda olhos de estiagem.

Tenho talento para abortar as recordações de um tempo há muito ido. Tão esquecido que nem mesmo sei se existiu.

Mas estou feliz com meu destino.

Voarei em direção ao pôr-do-sol, ultrapassarei o píer e o mar. Farei malabarismos no céu — eu, uma guará gorda e velha — e muxoxos para os urubus escrotos que comem o cadáver de um gato enquanto eu comerei um suculento filé de tainha.

Sou uma garça solitária e única. Meu talento: viajar sobre o mar. Uma garça em extinção.

 
 

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