TALENTO E SORTE
Natália Rangel
 
 

Começar foi fácil,embora eu tenha contado mais com a força do acaso do que com a força da minha vontade mesmo.O mais difícil foi escolher um pseudônimo que convencesse.Queria um nome mais original,que chamasse mais atenção,porém que dissimulasse em si o refinamento da discrição.Tudo bem,não entrarei em detalhes que não convém,o doutor me desculpe a enrolação.Na verdade gosto de narrar fatos e para tanto preciso de cuidado para não misturar com histórias inventadas.Desculpe,desculpe,irei direto ao ponto.

Eu estava parada fumando um cigarro.Na época era um hábito raro,mas paulatinamemte o espaço entre um fumo e outro foi se tornando menor.Essa parte não sei ao certo se vou conseguir contar de forma íntegra,sem misturar com as alucinações que rodeiam minhas histórias,como já expliquei,com a intensão de sofisticá-las.Minha vida é muito vulgar,o senhor talvez não entenda,é preciso tomar cuidado com as palavras que escolhemos.Minha vida é muito comum,sem acontecimentos excitantes,exceto por fatos raros como esse que o doutor faz questão que eu conte.Eu estava ali parada,e não sei ao certo por que,chamei a atenção daquele homem.Não estou usando aqui de falsa modéstia,afinal o espelho não esconde minhas qualidades,mas também não tem pudor em expor meus defeitos.A gente que é mulher conhece os pontos fracos.Mas devo admitir que naquele dia eu estava especialmente bem vestida,com minha roupa de domingo,como diria minha mãe,o que realçava minhas qualidades.Ele parou o carro ao meu lado,esticou o braço para abrir o vidro do carona,pois era o lado onde eu estava.Perguntou se estava ali "a perigo",e eu confesso ao doutor que não sei ao certo o que fazia ali.Talvez estivesse mentindo se dissesse que estava esperando uma amiga que morava no prédio logo atrás de mim,pois não sei se posso chamar assim pessoas com as quais raramente me encontrava para conversas sem qualquer profundidade,e muito menos me lembro se conhecia pessoas com tal padrão de vida para morar em tão luxuoso edifício.Só me lembro que não sei ao certo porquê respondi que sim,embora não tenha entendido o que ele queria dizer com "estar a perigo",mas como nessa vida estamos sempre correndo perigo,imaginei que estaria sendo sincera se respondesse positivamente.Ele sorriu malicioso e abriu a porta pra mim.E eu entrei.Há muito não andava de carro,e nunca havia entrado em um tão cheio de luzes no painel.Ele tentava puxar assunto enquanto conduzia o carro para cada vez mais longe da cidade.Eu não prestava atenção ao que ele dizia,absorvida pela paisagem na janela.E ele não parecia se importar muito com qualquer resposta que eu desse.Parou o carro e veio pra cima de mim.Não havia ninguém ao redor.Eu olhei nos seus olhos.Não gostei muito da figura.O doutor há de concordar que pessoas verdadeiras não conseguem sorrir com facilidade para pessoas com as quais não se identificam.Eu fiquei impressionada com a firmeza do meu golpe.Aquilo me causou um imenso prazer.Eu jamais havia experimentado aquela sensação de poder e força.Realmente ele não era um homem grande,mas havia mérito também em minha coragem e iniciativa.Eu senti um ódio imensurável por aquele sujeito,que despertou em meu subconsciente obscuro o nojo que sentia pelo que ele ia tentar fazer comigo.Sim,doutor,eu posso parecer meio lerdinha,mas uma hora eu entendo.Com o golpe,consegui me colocar em uma posição de vantagem,mas mesmo isso exigia que eu pensasse rápido.E eu fui ágil sim,havia em algum lugar dentro de mim um talento latente para aquilo,esperando apenas ser despertado.Segurei-o pelo pescoço,e nisso não precisei de muita força,ele estava atordoado pela pancada que levara na cabeça.E eu o enforquei com meu cinto,sim senhor,com a frieza que me é peculiar.Quando a gente é sozinha a gente não tem medo nem pena.Aquelas mãos sujas,pelo menos aquelas,jamais me tocariam novamente.Fui embora exorcizada.Meus demônios mais tarde voltariam,mas então eu já sabia o que fazer.Cada mão suja que procurasse meu nome no jornal faria aquilo pela última vez.

Minha vida mudou,doutor.E mudou pra muito melhor.Me aperfeiçoei nos golpes,que se tornavam cada vez mais certeiros e ágeis.Ah,eu sou muito boa sim,o doutor só vendo.Não pretendo parar,não senhor.Se o doutor me soltar,amanhã eu volto a agir.Volto sim,doutor,porque a gente não pode desperdiçar as nossas vocações.

 
 

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