CORAÇÃO DURO
Luciene Lima
 
 

O filho de Dona Eulália nasceria com um coração mólinho. Suave, macio, aberto, como moleira de criança.

Ora, veja bem, perderia a mãe assim que nascesse. Amamentaria-o uma tia que daria à luz a prima por quem se apaixonaria e por quem não seria correspondido. Gastaria a vida nesse amor de homem desesperançado.

Saberia de seu pai morto, como flor que murcha após luta constante sob intempéries da natureza malsã, de um mal repentino, sob um sol causticante, arrancando raízes da terra fechada.

Seus irmãos brigariam por uma herança pobre, uma casinha de seis cômodos quase aos pedaços. E depois iriam, cada qual, para lugar diferente, distante. Um iria para as Minas Gerais; outro se desarvoraria para São Salvador; outro, por conta de um emprego clandestino, iria para os Esteites.

Ele ficaria ali mesmo, por causa da prima que se casaria com um comerciante que não lhe seria fiel, por quem se definharia em cachoeiras de lágrimas naquela terra árida que os abrigava. Que sina...

As dores lhe atingiriam mui cedo. E teria que aprender a conviver consigo mesmo, o que não seria fácil pois ele seria de um gênio difícil, homem esquentado às bicas, desses que querem o agora para o ant'ontem.

Sua mulher aprenderia a ter outra sina quando percebesse que casar-se com ele não havia sido uma idéia fortunosa. Acabaria indo para Mangabeira, com os dois filhos nas ancas, fugindo do vicio da bebida do marido, pois ele iria achar consolo para seus danos nas frescuras da cachaça.

Todos atados, todos fugindo de si mesmos. Todos endurecidos, todos com razão própria onde o outro é que era o errado, o maledicente, o orgulhoso. Como mamãe, como papai, como titio, o que se perdeu pela caatinga atrás de um camarada que lhe devia um dinheiro mal explicado.

E então seu coração tentaria se livrar da casca, seus cabelos ficariam cinzas, depois alvos. E uma cegueira, por conta de uma catarata anciã, lhe tomaria as vistas, e seus filhos o reencontrariam anos mais tarde, e lhe dariam um lugar pequeno para passar os últimos anos de vida. Então, pararia de dizer tum-tum, seu coração severo, aprisionado num corpo hirto, já escuro.

Eulália estava enfezada, com a cara séria, semblante baixo; pagou à adivinha as poucas moedas que pedia, alisou a barriga, saiu da tenda.

"Mãe, vamos embora dessa feira dos diabos."

Estava irritada. Dona Dócia conhecia muito bem o tom de voz da filha.

"E a criança? A cartomante falou da sorte da criança, afinal?"

"Não, mãe, não falou nada."

"E o motivo dessa cara, causa de quê?

"De nada, mãe, de nada. Só da decisão que acabei de tomar."

"E que decisão é essa, pode-se saber, minha filha?"

Eulália olhou o céu, como se impaciente, como se desafiando seres invisíveis.

"Que vou ter meu filho, mãe. E que o coração dele vai ser o melhor de todos os meninos dessas paragens. Igualzinho o meu e o seu, mãe, igualzinho."

"Que teu coração nunca se endureça, minha filha. Aleluia, minha Eulália, aleluia!"

 
 

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