MEMÓRIAS
Tatiana Alves
 

O avô fora um homem austero. Criado em uma pequena aldeia portuguesa pelo pai após a morte precoce da mãe, faltaram-lhe o aconchego e a doçura que somente um colo de mãe pode dar.

A menina sabia-se amada, ainda que ele fosse muito rude para demonstrá-lo de forma explícita. Marcado por uma aura de severidade, seu olhar endurecera-se com o passar do tempo. Ela temia-o, encolhendo-se ao levantar de sua mão. A espontaneidade e os gracejos da infância eram-lhe proibidos, prenúncios da aridez do mundo. Passava os dias mergulhada nos livros, singelos e infantis, comovendo-se ao perceber que um dia não mais se interessaria por eles. Numa pré-nostalgia, sentia saudades daquilo que ainda possuía, constatando a efemeridade de tudo. Nessas horas, presente e futuro mesclavam-se, e ficava difícil precisar a idade da menina.

Chovia torrencialmente naquela tarde. Ela olhava pela janela, observando os longos pingos que escorriam pelo vidro. Subitamente, voltou-se. O avô entrara no quarto e a fitava. Ela então comentou o quanto a chuva a entristecia, embora não soubesse por quê. O avô olhou-a e respondeu, ternamente: "Entendo-te". Naquele momento, sua expressão abrandou-se e ela pôde vislumbrar histórias de sua infância, coisas que ele jamais contaria, que lhe permitiriam ver que por trás do homem rude houvera, um dia, uma criança risonha e travessa que a vida havia ocultado.

Após aquele curto diálogo, que não durou mais do que um minuto, a formalidade estabeleceu-se novamente. Mas ela jamais se esqueceria daquela tarde chuvosa em que haviam ignorado a distância e, juntos, chegado às terras d'além-mar.

 
 

fale com a autora