SAUDADE QUASE DO AVESSO
ou "A vida presente"
Beatriz Galvão
 
 

SAUDADES

Saudades! Sim... talvez... e porque não?...
Se o nosso sonho foi tão alto e forte
Que bem pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?... Ah! como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como pão!

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar,
Mais doidamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim!

Florbela Espanca

*****

Tomou um chá para tentar esquecer, se aquecer. Se afogou.

Os olhos, marejados de água e sal lembravam-na, incessantemente, de todas as agruras daquele sentimento barato, tão barato que sequer podia vender. Ninguém o aceitaria, nem de graça. Nem mesmo Fernando o havia aceito. Não valia nada. Pegou-o e o encararia nos olhos, se olhos o sentimento tivesse; virou-o do avesso e percebeu suas entranhas costuradas de dentro para fora. Gozado, cada ponto costurado remetia-lhe uma lembrança. Tantos "eus", poucos "nós" em ponto-cruz:

(a)Sua vida de cabeça para baixo nos vai-vens daquele homem;
(b)Seus sonhos cerzidos no tecido da vida conjugal;
(c)Os travesseiros em lados opostos;
(d)Os olhos em lados opostos;
(e)As vidas em lados opostos.

Ela dizia que era preciso pensar em nós. Ele dizia eu não tenho tempo. E o tempo foi passando, e normalizando os pequenos sustos daquele coração infeliz.

Em épocas remotas, diria ele que a iria buscar na faculdade. Surpresa: de mãos floridas. Mas, no presente, descobrimos que abarcar o futuro é esquecer o passado. Inventar sentidos. Re-viver, ainda que do avesso do avesso de tudo o que já fez sentido um dia.

Decidiu: mudaria de página, mas, para isso, era preciso encontrar novamente o que havia se perdido com o tempo (o mesmo que normalizara os sustos das sístoles e diástoles de seu órgão mais-que-vital). Procurou nas gavetas: entre cartas e poemas, recolheu pedaços do que procurava. Embaixo do tapete da sala: memórias da primeira noite que passaram juntos naquele apartamento, logo que se casaram. Na cozinha, juntou restos de chocolates recebidos no seu último aniversário antes de se casarem. Na cristaleira, os copos do primeiro brinde que levantaram a si próprios ainda reluziam, como se festa ainda fosse. No escritório do marido, exclamação: documentos da conta que, conjuntamente, abriram para fazerem aquela viagem dos sonhos, que nos sonhos ficara: a conta passou a pagar contas, e as prestações eternas mortificaram a lua-de-mel. Metáforas de uma vida em construção.

Entre cacos e sorrisos, construiu o mosaico perfeito de uma história incompleta. Dar-lhe-ia de presente por todos aqueles anos de plenitude, onde até a ausência teve seu lugar. Na hora do jantar, porém, um bilhete substituiu aquele que dizia estar, mais uma vez, sem tempo.

Tempo que ela nunca mais perderia. Tempo, que dentro de si não mais existia. Tudo agora era urgente.

Fechou os olhos, mergulhou no vazio de fora, de malas prontas, de coração pronto. Mas não estaria sozinha: levaria o mosaico consigo. O tempo havia sido útil. Agora, porém, prescindia de existir.

 
 

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