KEILA
Beto Muniz
 
 

Vez em quando ainda me lembro do balão azul subindo, sumindo, indo se confundir com o azul do céu. Não acho que seja saudade, penso que é apenas lembrança de um tempo besta, em que os conchavos segredados ao pé do ouvido visavam conquistas gigantescas, significativas, almejadas com todo o fervor da alma. Sim, houve uma inocência que se perdeu no tempo, sumiu feito um balão azul.

Aos quatorze anos eu não tinha ainda segurança nas minhas explorações eróticas e Keila se tornou uma espécie de cobaia, foi com ela que descobri os prazeres das preliminares. Confiávamos um no outro desde que tínhamos sete/oito anos e por isso nos permitimos experimentar um o corpo do outro. Ela tinha liberdades no meu corpo que nunca mais mulher alguma conquistou. Eu me deixava ser observado, pegado, analisado, excitado, masturbado e ela retribuía. Keila dizia como minhas mãos deveriam correr pelo seu corpo adolescente. Ensinou-me a retirar os tecidos que cobriam sua pele, a pegar e acarinhar os seios, enfurecer seus mamilos, escorregar a mão por entre suas coxas. Eu obedecia, seguia suas orientações olhando para a boca semi-aberta, arquejando breves gemidos quando minha mão encontrava suas umidades. Eu esquecia as lições e ficava excitado com o erotismo exalado por Keila. Sua respiração inseria um ruído dentro da minha mente, o som era conduzido pelo sangue quente descendo, tamborilando, sons de guizos despertando a libido até produzir gingas intumescentes que inchavam, agigantavam uma parte de mim. Eu era um animal furioso, louco para sentir o calor nas entranhas de Keila, mas o pacto me domesticava. Não havia sexo entre nós, apenas excitações num acordo de curiosidades, descobertas e aprendizagens. Absurda confiança gerando uma liberdade extremada em nossos corpos de estudos.

Aos sete anos de idade conheci Keila - ela tinha oito, numa festa da escola. Talvez dia da criança. A dança das cadeiras começou com vinte ou mais crianças da mesma faixa etária. Eu corria em volta das cadeiras esperando a música parar e então disparava, atropelando Deus e o mundo para ocupar uma das cadeiras vazias. Queria ganhar o prêmio. A bicicleta usada, torta, desbotada, doada por alguém que tinha ganhado outra nova, maior ou melhor. Eu achei que era perfeita e decidi lutar. Aquela bicicleta seria minha! Numa das disputas pelas cadeiras percebi a menina de rosto afogueado, atropelando, como eu, Deus e os adversários. Temi. Ela era maior. Cada vez que a música parava eu atropelava aqui e ela arrebentava lá. Entre nós o número de crianças diminuindo.

Música! A corrida em círculos, um olho na cadeira e outro na menina maior que eu. As cadeiras diminuindo e as dificuldades aumentando. Eu e a gordinha já emparelhados. A bicicleta dum verde-desbotado esperando por mim escorada na caixa de som... A menos que a menina me atropelasse!

O professor vestido de palhaço fazia às vezes também de locutor e animava a platéia enquanto uma das professoras arrumava as últimas quatro cadeiras. Keila à minha frente, suava, esperando a música recomeçar. Ela se virou, ficou me encarando alguns segundo e então me pediu, segredando ao pé do ouvido, para ajudá-la a ganhar o segundo prêmio. Em troca ela me ajudaria a ficar com o primeiro lugar no jogo. Surpreso concordei. O palhaço animador soltou a música e começamos a correr em círculos. Nem bem a música parou e Keila disparou, saiu antes de mim e se jogou sobre outra menina que já tomava posse da cadeira ao lado da sua. Claramente havia reservado meu lugar ao seu lado.

O animador pediu que tirassem mais uma cadeira e agitou os ânimos dos concorrentes que ficaram. A próxima corrida seria para disputar três cadeiras. Quatro crianças correndo até que a música parasse. A música parou e eu corri, estava bem posicionado e me joguei sobre duas cadeiras, Keila estava colada em mim e ocupou a vaga que deixei. Tínhamos um trato!

"Agora são três crianças para duas cadeiras" - lembrou o locutor aos berros, como se ninguém soubesse fazer contas na platéia. O coitado do menino praticamente foi jogado ao chão pela dupla. Eu e Keila na final. O terceiro colocado ganhou um pirulito.

Uma cadeira!

Corríamos ao som de berros e música. Sem perceber estávamos de mãos dadas. Quando a música foi interrompida ela praticamente me conduziu, eu assistia em câmera lenta a mão dela me levando e me posicionando para ocupar o lugar da vitória. Antes de sentar me virei e encarei o rosto afogueado da menina. Ela sorriu, soltou minha mão e me entregou à cadeira. Assim mesmo, Keila me entregou para a cadeira que me acomodou. Foi neste exato instante que sacramentamos o pacto de cumplicidade e confiança que jamais foi quebrado, mesmo depois de adolescermos e chegarmos ao período em que os hormônios sobrepujam a honra e a palavra empenhada.

Eu tomei posse da minha primeira bicicleta e Keila do segundo prêmio, um balão azul que, preso ao seu dedo por um cordão, flutuava acima de nossas cabeças. Antes do meu primeiro tombo a caminho de casa - eu ainda não sabia andar de bicicleta, o balão já tinha escapado de suas mãos. Vez em quando ainda me lembro dele subindo, subindo e sumindo num céu sem nuvens.

 
 

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