E PARA VOCÊ TAMBÉM QUERIDA ©
in "Ao redor da mesa"

Cármen Rocha
 
 

Lembranças...

Avaliei minha vida tim-tim por tim-tim. Agora poderia dizer que tudo estava nos eixos. Ah, minha consciência! No entanto pela minha roupa alegre, meus cabelos soltos e brilhantes, meu sorriso constante e minha vida saudável... ninguém poderia avaliar o inferno que minha vida fora antes e depois daquela tarde tenebrosa da terrível leitura da carta. Mais...tout passe, tout lasse, tout casse...

O passado retorna...

Teria o quê? Uns dezessete anos? Por aí. Como se fosse ontem, minha desgraça retornou com força total, com tal intensidade, que minha pele delicada se arrepiou com o impacto das recordações. Bateram violentamente à porta:

- Abra sua fingida - berrou aquela mulher - e não diga que está estudando, porque ninguém vai acreditar nessa!

- Não, não estou... (na verdade, não estava) mas entre com calma, por favor, não vá gritando desse jeito. Não sou surda! - falei baixinho comigo mesma, para que ela não ouvisse, pois eu precisava de coragem para enfrentá-la. Se papai soubesse o que ela fazia comigo!

-Vá almoçar, e nada de reclamação, feche sua boca. Tem ainda algum resto para você. Senti a dor aguda na nuca, onde ela ficou encostando o gelo do seu suco. O cabelo encobriria o ato infeliz.

- Você não me chamou na hora... falei baixinho - sinto tanta fome...

- Cale-se. Sem discussão.

Desci acabrunhada e pela minha cabeça foram passando os últimos acontecimentos que marcaram a minha vida desde que mamãe morrera...

Essa mulher freqüentava sua casa bem antes disso... tenho certeza que ela e papai já se entendiam antes disso. Lembro- me da tristeza marcada nos olhos de minha mãe... E o dia em que ela me puxara, e me beijando frouxamente...

Minha filha, eu vou partir breve.. .- cochichou. Para aonde, mãe? Para longe... Não, não vá... choraminguei. Bem que eu queria ficar com você, benzinho, mas não tenho escolha, é o destino. Lá não tem telefone? Ah, minha filhinha...E agarrando-se desesperada aos meus ombros: Se você notar algo, se te maltratarem nesta casa, abra essa carta e leia com atenção! - passou-me escondidamente um envelope em branco que apertei no peito estreito. Prometa-me, prometa-me! Sim, mamãe, sim... Diga comigo, minha querida: Eu prometo! Repita, repita novamente. Suas lágrimas desciam espontâneas, e eu repetia e repetia. E agora vinha nitidamente aos meus ouvidos: Se te maltratarem abra a carta, se te maltratarem abra a carta...

Uma pausa para ...

Diante de todo o meu sofrimento eu ainda hesito em abri-la, como se adivinhasse um grande segredo, terrivelmente guardado até dela própria, tal seu terror. Por que mamãe não dissera simplesmente o que fazer da minha vida? Pobrezinha, tão fraca...Torturada por esses pensamentos resolvi ainda aguardar e deixar para mais tarde essa resolução aterradora.

Tanto tempo passou...

Meu pai e a mulher viajaram, nesses dias. Ficariam uns dias fora. Retomei rapidamente minhas atividades e o meu namoro com Luís, até então escondido. Ai! Se ela soubesse, faria tais artimanhas, viraria tudo de tal jeito, que meu pai proibiria o namoro. Nestes dias pude relaxar e respirei aliviada.

Voltava da cidade, onde fôra buscar informações de um provável emprego, qualquer coisa, saída segura dessa horrível situação - incitava-me Luís. Essa mulher! Meu pai não desconfiava de nada. Ela o convencia facilmente, tal o domínio que ela exercia sobre ele. A carta ...

E, dessa vez, sim, por sentir-me mais segura, não podendo mais aguardar novos rumos em minha vida, e aproveitando a total solidão, resolvi abrir o tão tenebroso e terrível envelope, para, sabendo da revelação preparar-me melhor para o que desse e viesse. Rasguei-o, e em meu peito e garganta o coração batia como nunca, e eu, em quase vertigem violei finalmente aquele conteúdo guardado por anos e anos... Vinha escrito com letra trêmula e tortuosa:

Minha filha, tenha coragem, sei que você sofre, eu lhe darei forças daqui onde estou, entretanto abra em lugar seguro! Não mostre para ninguém.

Acabo de rasgar febrilmente o envelope e estremecendo leio: Essa mulher - não posso escrever o nome, tanta angustia em meu peito, já vive com seu pai há algum tempo. Desde nossa viagem à casa da praia, você se lembra? Quando numa tarde chuvosa, eu os surpreendi através da vidraça. Eles se beija... Ela percebeu meu vulto semi-oculto pelas cortinas. Nunca mais tive sossego. Ameaçou matar-me, e judiar de você para sempre. E um dia, quando ela percebeu que seu pai iria a falência, caminhando para uma vida de pobreza, tentou também matá-lo. Interrompeu esse plano horrível, quando percebeu que seu tio emprestara muito dinheiro, salvando-o não só da pobreza, como da morte certa. Eu acompanhei tudo! Sozinha e tentando poupá-la - uma criancinha inocente - voltada totalmente para você, minha filha, não percebi que ela estava me envenenando há algum tempo. Eu era frágil e doentia. Já era tarde para mim. Só me restava salvá-la, querida. Calei-me. Resolvi escrever-lhe tudo para que, se corresse perigo, poder se defender - levantei-me e comecei a andar pelo quarto. O ar me faltava. Meus olhos embaçaram.

Escute! O grande segredo: essa mulher, que vive com seu pai, traiu-me, e foi a minha algoz e assassina. Fuja de casa, não há salvação para você minha filha, fuja, fuja! Não há salvação...

Então... esse era o segredo! Pobre mãe. Minhas lágrimas e soluços vararam a madrugada. Não pude acabar a leitura. A lembrança de minha mãe e a dor de perdê-la tão jovem, assassinada, sufocaram-me. Mas, eu própria me surpreendia, com o passar da noite, quando todos os meus demônios seriam soltos e sem me dar conta, arquitetou-se em mim um emaranhado de idéias, nada claras... mas tenebrosas... O tempo passou em sofrimento. Eles voltaram da viagem, a mulher mostrava-se sempre minha amiga em frente ao meu pai, e ele de nada se apercebia.

Uma chance...

Certo dia, feriado religioso, todos tinham folga. Há muito que esperava por isto, tão propício, pois contaria com a presença de meu pai. Ao entrar na sala, onde estavam reunidos, propus-me expor a minha situação de trabalho. Resolvi falar claro e respirando fundo, tremulamente:

- Vocês sabiam que fui chamada por aquela firma de medicamentos em que fiz o meu primeiro teste? Há um mês mais ou menos... Eu aceitei ... e poderia começar a qualquer hora... Só espero um telefonema marcando o dia, e... e... é claro, o consentimento de vocês... - Coisa boa, Cecília, seu pai ficará satisfeito, não querido?

- Já não era sem tempo! Pois eu a levarei no primeiro dia, filha.

Mal sabia ele o jogo que aquela mulher fizera das outras vezes, escondendo cartas e desviando telefonemas. Quantas propostas perdidas. Entretanto, parece que consegui vencer dessa vez. O que viria depois? Assim que meu pai se afastou, ela deu uma gargalhada. Senti na nuca o terror que minha própria mãe sentira. E fiquei com tal ódio que precisei dominar-me. Ela virou-se para mim... Seus olhos queimavam de ira. Mas meu pai reentrava na sala. Sorrindo delicadamente, disfarçou:

- Cecília, precisamos separar umas roupas práticas e bonitas para seu trabalho. Não vá deixar para última hora, como fez da última vez, não é, querida? Respirei fundo e fiz o mesmo jogo.

- Ainda bem que conto com você, Maura.

Ela, tomada de surpresa, pela minha frase e rapidez da resposta olhou-me rapidamente e calou-se. A guerra estava declarada entre nós. Daí em diante, ela iria conhecer a minha força.

Todas as vezes que ela saía, eu aproveitava para por meu plano em dia. Nem eu própria poderia imaginar a extensão do meu ódio. Li e reli mil vezes a carta de minha mãe, como se dela eu me alimentasse, principalmente no pedaço em que cita os sintomas que foram aparecendo em seu corpo frágil, pela mão daquela infame: leve paralisia dos braços e pernas, dificuldade de fala, ligeira febre ou torpor. A língua semi-paralisada dificultando o comer, a vista turva, e ligeira falta de ar. Eu compreendia muito bem esses sinais. A minha intuição voltada para sintomas e fórmulas e o meu trabalho de pesquisa junto aos médicos, intensas buscas na biblioteca, em bulas, tudo favorecia o meu intento.O plano vai se delineando... Até que um dia, fez-se luz, achei uma fórmula simples e secreta para pôr fim às maldades daquela maldita mulher. Aos poucos fui juntando pequenas porções, e que aos poucos, primeiro cerimoniosamente, e depois em doses mais apropriadas, fui ministrando ora em seu prato, ora em seu suco...

O estranho pó fazia ótimo efeito para a minha alma.

O tempo passou. A sutileza passou a ser o meu modus vivendi. E para ela pequenas e delicadas mudanças de vida.

Sua gargalhada tornou-se em sorriso, até que consegui apagá-lo. Meu pai nos levou, em férias para as montanhas, pois sua respiração, devido a poluição, com certeza, não mais era tão vigorosa como antes. Massagistas em casa, não conseguiram esticar aqueles dedinhos tão delicados, que muitas vezes puxaram meus pobres cabelos até que as lágrimas dependuradas, tivessem que ser engolidas novamente. Ai, como me lembro!

O demônio se apresenta ...

Pobrezinha, sua língua agora travava com tanta freqüência, por que seria? E somente agora, é que eu iria entrar realmente em cena. Agora ela iria saber das coisas como elas deveriam ser, pondo de lado a sutileza.

Depois de uma noite em claro, eu própria vivendo febril aqueles últimos acontecimentos, tomei outras medidas, mais eficazes para tornar a vida daquela criatura, simplesmente... medonha.

Naquela noite, meu pai se queixava de sua tristeza. Eu, então, piedosamente me ofereci para, durante o tempo que tivesse livre, cuidar da querida Maura. E também nos sábados e domingos. Meu pai nunca vira tamanho amor e dedicação. Eu sempre a estimulava. Querida, coma sua sopinha, vamos, falava com doçura, vamos, ela está bem temperadinha. E levando o sal ao prato, colocava uma dose generosa em sua boca, levemente retorcida. Hora do banho. Que delicia de banho, vamos solte mais esse braço, pois esta água está quentinha. Realmente não sabia por que sua pele estava ora arroxeada, ora avermelhada. Deveria ser o tempo, entradas de julho.

- Minha filha, você não está cansada? Precisa sair um pouco, passear, para espairecer, querida, na sua idade....

- Ora, papai, você sabe muito bem que nunca me senti tão bem assim - e era a pura verdade, mal se apercebia ele.

Minha vida se consumiu naquele terrível tipo de vida, em que eu sentia um desmedido prazer. Maura foi definhando, gostosamente, quietamente. Só seus olhos mostravam algo, talvez um brilho do passado? Então, por causa da claridade, para poupá-la, enquanto eu cuidava da pobrezinha, colocava neles algum colírio suavizante, talvez com uma pontinha de algo como direi, estranho, claro. Ou simplesmente para os proteger, tampava-os com um lenço com leve odor, desagradável, eu diria.

O que lhe restava? Dormir é claro. Para ajudá-la colocava umas músicas deliciosas, com o aparelho de som bem encostadinho em seus ouvidos. Bem às vezes dava uma certa estática, acho.

Bem, agora realmente só lhe restava - nada. E infelizmente ela veio a falecer depois de alguns poucos anos de tanto tratamento e dedicação.

Adeus...

Neste dia fatídico, do seu enterro, lembrei-me claramente, do dia cinzento e triste, o da morte de minha mãe, quando esta mulher, sorrateira, aproximou-se e com os olhos brilhantes e declarou-me:

- Meus pêsames, queridinha. De hoje em diante cuidarei que tudo corra muito bem, mas muito bem mesmo para você, Cecília.

- E para você também, querida... - respondi em seu túmulo.

 
 

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