EQUILIBRISTA EM CIMA DO MURO
Beatriz Galvão
 
 

, todavia, entre champanhas nacionais em copos de plástico, afirmou categoricamente que jamais se envolveria novamente. Os sisos trocados pelos risos faziam o hino daquela noite em que, num deserto de almas, também desertas, uma alma especial reconheceu a outra de imediato. Recordo-me, contudo, de tudo: dos momentos sonhados aos chocolates não comidos. Metafísicas rasgadas para nunca mais, embrulhadas em folha de estanho e tombadas ao chão. Ele, que conheceram logo por quem não era, perdeu-se por não desmentir. E hoje encontro-me aqui, jogado ao chão, eventualmente nas mãos de alguém que sequer o conheceu e que agora o analisa em partes. Sou a parte dura, mais frágil deste homem que não soube ser brasa nem além. Parte mais afetada dessa vida mal-escrita, contarei do amor não vivido que ainda guardo aqui dentro:

Chovia muito e, há muito, não se lembrava do que era ter os cabelos alongados pelas lágrimas de uma natureza enfurecida. -se fosse, ao menos, capaz de me ouvir enquanto podia, ouviria: "a natureza se enfurece quando a negamos dentro de nós mesmos!". Nós, na garganta. Do coração. -mas nunca abrira a cabeça para que florescesse o mais que humano em sua frágil respiração. O céu, àquele dia, lavou as ruas, as cidades, as matas, as pessoas. O céu choveu histórias, lavou almas, levou lamas e tudo, então, ficou à mostra para todos. Para quem quisesse ver. Para quem fosse capaz de se ouvir. Me lembro. Estava ajoelhado após ter corrido becos e avenidas. "Sem saída possível", pensava. Deveria mata-lo, para que tudo fizesse sentido. Para que nunca mais tivesse de mata-lo por dentro. Seu melhor amigo: morto. O vira saindo com outro homem, travestido de mulher. Uma farsa! Apenas saia, silicone barato, maquiagem. Farsa! Todas as histórias, as confissões, as risadas... toda a cumplicidade se perdera num só minuto. E porque fugia? De que ele mesmo fugia agora? Me lembro. Fugia porque ouvia às avessas o que eu dizia: "Corra, enquanto é tempo. Rápido!"

O amor, com todo o seu tenebroso esplendor, chegara, mas faltou-lhe um golpe de asa. Ficou aquém. Não soube rasgar os manuais sociais e virar a mesa do bar. Não soube, jamais, quão curta era a distância entre os lábios dele e de seu amigo.

"Meu Deus!" -pensava ele - "Não pode ser verdade! Tantas noites eu rezei. Quanto de mim já chorei por mulheres, por desespero, por cobiças frustradas, até pelo sofrimento alheio, meu Deus! Quanto de mim não se desperdiçou contando os dias da primavera, apenas para reencontrar os olhos dela? Quanto de mim se perdeu, não sendo?"

Tarde demais. Toda razão, toda palavra, valia nada. Dor sem fim de ter vivido no espaço entre. Quase o amor, quase o triunfo e a chama. Quase o princípio e o fim -quase a expansão... E, hoje, duro e quente, examinam-me e ao resto de seu corpo, a fim de descobrirem o motivo de sua morte prematura: coração.

 
 

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