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Edison Veiga Junior
 
 

Blém-blém-blém, doze vezes, e num átimo já não era mais meia-noite pois o tempo não pára. E ouvia ela assim, insistentemente, o repicar do sino anunciando o fim de mais um dia, rotina, mesmice. Mas será que o sino existia ou tudo não passava de desvario seu? Pois se sino não havia que é que repicava e repicaria blém-blém-blém quase sem querer? E se fosse o mesmo sino que ela não sabia que existia e repicava perfeito para estender o som da marcha fúnebre às sextas-feiras, pontualmente cinco da manhã? Aliás, não se via capaz de entender o porquê do lúgubre ruído deveras por causa de seu pensamento no som da trombeta anunciando renitente a morte de alguém. Por que isso a lembra da morte dos grandes soldados na guerra, deixando-a triste na vaga lembrança daquele vulnífico tanque de batalha na fazenda do avô? Para que dele lhe servia o avô? Apenas para alimentar as traquinagens dela e seus primos que cometiam afoitos diante do bélico instrumento? O eco do blém-blém-blém não respondia, era só silêncio, e ela audaciosa e melindrosa se encolhia toda na cama quentinha só de pensar nessas bobagens que chegam até a tirar o sono da gente. Afinal, que ia ela de querer com o sino que repica, o vento que chacoalha, a voz que estremece? Investigar o instigante motivo que levaria o sino a trabalhar altas horas da noite, incessante, mesmo que no mesmo instante exato todos dormimos como juliãos descansados? Não, não, apenas uma coisa tinha certeza: ela, e só ela, sabia conversar com estrelas. E sabia que sabia, isso era melhor ainda, pois a consciência a revestia de talento e a fazia um quê mais forte. O resto? Conquista-se, compra-se, vende-se... Falar com estrelas, só ela, mesmo quando no céu não há mais estrelas, mesmo quando é dia e o Sol estrela maior egoísta se sobrepõe às demais e apaga o que não é tão claro como ele. Pois sabia bem até procurá-las na claridez e as encontrava mormente, mesmo aquela que menos brilha, aquela que julga como sendo sua, só sua.

Pensando no tempo que passa, olhando para trás no hoje que já vira ontem, assim dormiu, sorrindo, sonhando com estrelas de uma nova fábula. Estrelas mais fortes que o Sol, queimando sinos que jamais repicarão de novo. Quem nunca sonhou em ser poema? Ela se via um verso, nua e crua, formando estrofes brancas, algumas coloridas, quem vai perceber? Sonhava que suas palavras compunham o mais belo soneto de amor e que o amor valia a pena mesmo que ninguém acreditasse nisso. Sentia-se forte, coalhava a morte que havia dentro de si como se a calma fosse virtude e bem necessário. E guardava consigo própria essa vontade interior de ser poema, alma nova vibrando em versos... De certo não achava certo dividi-la com mais ninguém, assim constatariam-na jamais como desvairada e coisa e tal. Fazia bem parte de seu temperamento misantropo limitado tornar-se um crente incrédula e por uma momento poderiam transformar suas idéias numa seita antagônica e ela ser julgada pela sociedade como maluca. Isso a deixava amedrontada e reprimida diante dum sentimento tão significativo. E a faria esconder o segredo dentro dos sete buracos da cabeça.

Blém-blém-blém, outras vezes, e já era bem mais que meia-noite. Estrelas cintilando ao luar denunciavam a neblina esparsa da madrugada. Quem cai na armadilha do blém-blém-blém? Ela não caia e nada parecia interromper o sono azul que levava incontinenti e perene feita possibilidade de o paradoxo assim puder ser. Aliás, tudo pode quando se é verso de poema, tudo pode quando se sonha, mesmo que pesadelos de granizo interrompam a azuléia serpente das tormentas alegres que circundam as fossas cerebrais em momentos de turbulência intelectual, quando se mergulha no profundo descanso. Descanso, uma ova!, é hora essa que a cabeça trabalha mais, e mais livremente, sem a interferência da pálida zona consciente. Não tinha lido que a relatividade fora descoberta num estampido noturno do sono e sonhos de Albert, o Einstein? Fosse ou não fosse verdade, é de lendas que o homem vive, sobrevive no mundo cruel e casto do consumismo e da esterilidade da imaginação.

Afinal, quem nunca sonhou em ser poema? Ela estava absorta nisso, um poema de vidro à beira de abismo que pode se quebrar num leve toque do vento, caindo profundamente e influenciando as futuras gerações. Quem nunca sonhou em ser poema? Ela era ela, sentia-se um lindo poema quase perfeito, burilado com carinho pelas mãos do sábio poeta do seu coração. Ela era palavras nuas e cruas, e estava assim aconchegada em sua cama quentinha, toda nua ela, verso e coragem, pensamentos e sonhos, desvarios. Bem sabia, é verdade, que qualquer dia amanheceria e então desperta podia descobrir seu engano de querer ser poema, então certificava-se meticulosa que não era tão perfeita como pensava naquele momento. Blém-blém-blém, só o tempo passa quando se pensa e o mundo pára.

Mas se fosse palavras como sonhariam os analfabetos?, sem essência, sem cor, sem alma, sem jeito... Não! seria egoísmo demais vilipendiar dessa forma os anseios daquela gente estranha que não conhece letras pelo nome. Não bastasse toda a montanha que os separam na sociedade, ainda teriam que ter sonhos chatos, seria demais para a misericórdia ou a ira divina. Ela era piedosa e se conclamava de dó daquela gente humilde e resignada enquanto dormia o turbulento sono. Nua e crua, na cama quentinha... à espera de um calor mais intenso, mesmo efêmero, algo que poderia fortalecê-la eternamente, se a eternidade não fosse uma coisa tão longa que tanto e quanto tempo dura jamais ninguém soube ao certo explicar-lhe.

- Professora, venta no avesso da Lua? Por que o mar não derrama? Quem inventou a pipoca? Quanto tempo tem o infinito? – Era ela, desconcertando a mestra da primeira série, pobrezinha, invariavelmente sem resposta para questões tão intrinsecamente banais. Que será que será dela? Estará viva ainda? Creio que sim, pois dúvidas existenciais duram para sempre. Deve estar bem velhinha, o tempo não tem pena e esbanja nas pessoas a vingança por seu tédio de ser eterno: condena-as à senilidade, em cadeiras de roda ou de balanço, com animais de estimação ou em asilos, fumando cachimbo ou jogando baralho, tomando viagra ou lendo a bíblia, dormindo ou viajando, morrendo ou apodrecendo em leitos hospitalares... Quanto a mim, não. Nada me condenaria, nem mesmo o tempo que nunca vejo passar e quando passa arrasta-se como sereias em mares de lama. Descanso em paz? Aqui jaz a professorinha inocente, responsável por minhas primeiras dúvidas não respondidas, culpada dos meus primeiros dilemas, pela minha paranóia inicial. A professorinha de quem não tive pena, pois poderia perguntar apenas datas e nomes, regras ortográficas e resoluções óbvias da matemática. Mas perguntava questões crucialmente filosóficas.

Que a terra lhe seja leve (nada nos deixaria, nem mesmo a sua virgem face incolor. Nunca a censuraria por não sanar minhas dúvidas, afinal nem mesmo a inocência e a ignorância revestidas num corpo humana poderiam responder algo que nem mesmo Deus saberia ao certo como acontecia. Isso me engasgava até hoje e sempre me engasgaria feito nó na garganta).

 
 

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