DIVINA PRAGA
Kalindra Baba
 
 

O Lamento de Um Carioca Muito Conhecido Nosso

Estou cansado. Estou muito cansado. Pudera ! Há quase oitenta anos encarapitado aqui no cocoruto desse morro vendo todas as barbaridades que vocês vêm fazendo com essa cidade tão linda, que não é mais maravilhosa. Aliás, tem dias que quase não consigo enxergá-la tal a nuvem de poeira que paira sobre ela. Os meus olhos ardem. Como posso olhar por vocês, se mal posso vê-los ?

Antigamente vocês moravam em casinhas ou casarões e eu sabia o endereço de cada um. Lá pelos anos sessenta vocês endoideceram; procriaram como coelhos, arrancaram árvores, aterraram águas, desmataram minhas florestas. Construíram gaiolas enormes vivendo um por cima do outro e fazendo paredes de concreto ao longo das praias e lagoas, impedindo o vento de ventilar e aumentando o calor na terra. Depois instalaram aparelhos para substituir a brisa fresca que vocês mesmos impediam de circular.

Aqui em cima era fresquinho. Agora, com os raios doentes desse sol me castigando a cabeça, rogo por uma chuva. Ácida ! Nunca tinha ouvido falar em chuva ácida. Pois é, agora a chuva é ácida - novo sinal dos tempos de poluição.

Digam-me, por que vivem atrás de grades como bestas nos zoológicos? Em outros tempos vocês se cumprimentavam, se comunicavam - eram um povo alegre e solidário. Cadê a alegria ?

Alimentavam aqueles poucos que moravam nas ruas e que vocês ainda olhavam com cara de gente. Os pobres trabalhadores honestos que moravam nos morros se transformaram em favelados, onde são escondidos e protegidos pela munição dos reis do cenário. Sumiram os malandros, aqueles, inspiração de tantos sambas inesquecíveis. Marginais mocinhos, bandidos ricaços são a mistura homogênea dessa massa flutuante que não vagueia por lá - têm rumo certo. Quem é quem?

Ainda há poucos anos atrás, vocês vinham me visitar tão contritos, tão fervorosos, subindo as escadarias degrau a degrau piedosamente, num ritual de religiosidade para se sentirem mais pertinho do céu e prestarem sua homenagem a mim, que era a representação da cidade abençoada. Hoje sou apenas uma atração turística e vocês podem me alcançar via escada rolante one way. Pior, a minha imagem circula na internet como pano de fundo às manchetes mais bárbaras dos mais atrozes crimes quotidianos: "Tráfego. Trânsito. Trabalhador Truculento Patrão. Tráfico. Trapaça. Tropa. Patrulha. Metralhadora. Estrondo. Tráaaa-Tráaaa-Tráaaaa !" Chega de tanta tragédia, dos seus gritos feridos, das sirenes dramáticas atendendo às dores das vítimas das buzinas descabidas. Os meus ouvidos doem de tanto ruído.

Besouros metálicos me sobrevoam tão de perto que quase me arrancam os bigodes -a novidade que vocês inventaram. Não consigo descansar nem de noite- luzes azuis e ou brancas fortes, fluorescentes, dicróicas me focalizando, como se eu fosse um astro de cinema !

Infelizmente a minha visão é panorâmica e o que vejo é um grande cemitério da natureza. A meus pés, cada vez menos verde e mais e mais muralhas de prédios, trancados, cercados, brancos, ou cinzas ou cor de granito; praias sempre menores; aterros, maiores. Cada vez menos azul, e o mar, mais longe. Vocês se escondendo de vocês e sendo vítimas de seu próprio festim de atrocidades. Que pena ! Era uma cidade maravilhosa.

Estou me despedindo. Queria informar-lhes que, aos que ainda pedem, rogam, imploram por mim antes de dormir, recomendo o São Sebastião que, por sinal, é o padroeiro de vocês, ou talvez o São Jorge, guerreiro, bem afeito a lutas. Eu sou da Paz e estou cansado. Em verdade, estou exausto dessa tristeza e, antes de ser vítima da próxima bala perdida, prefiro que um raio me parta.

E assim foi feito, segundo a Vossa vontade.

 
 

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